por: Ailton Benedito de Sousa*

Saudemos a libertação do compatriota José Dirceu como “início” (talvez) da afirmação bem tardia em nossa terra de princípio historicamente multimilenar na humanidade, ou seja, de que  prisão, dada a derrogação de noções caras ao direito e dado o custo desproporcional de sua logística,  não pode ser tida como castigo para ninguém. Usada como “o castigo”, como agora no dito Ocidente, ela é índice de desvio ou deformação de percepção dos fins da convivência social, é desrespeito a valores, é idiotia, loucura coletiva, ou mais precisamente, racismo.

Convenhamos, não pode ser tida como medida compensatória, de ressocialização,  uma prática que confina, priva das noções mínimas de pertencimento e do exercício dos mais elementares direitos, uma população, no caso do Brasil, de mais de 600 mil indivíduos, população cujos integrantes são adrede determinados, escolhidos, quer pelo nível de renda, quer pela cor da pele, ou por ambos…A sociedade não se reconhece racista (exceto e à boca pequena entre meia-dúzia de “operadores do direito”), mas… não obstante os textos das constituições republicanas consagrando a igualdade de todos perante a “Lei”,  deu-se terra (passagem, hospedagem e implementos) a imigrantes brancos, a partir de campanhas “pseudo-cívicas”que exaltavam o “embranquecimento” (sic) do país…Minto? Provem-me…Li há algumas décadas Antonio da Silva Melo, que recomendo a todos… Mais ainda, até bem poucos dias atrás proibia-se a entrada de africanos negros no país…

Voltando ao tema encarceramento, há centenas de outras formas mais eficazes de a sociedade haver-se com o transgressor de suas normas, de modo que ambas as partes – sociedade e transgressor tenham confirmados seus níveis de respeito mútuo e dignidade, esferas privativas de ser humano.  Note-se ainda que “se há contrato social”, a sociedade também pode transgredir… e toda hora transgride, como a nossa, agora, perpetrado o GOLPE, nesse caso tornando-se justa, legal, a destituição de seus  autores, acompanhada de medidas compensatórias, é claro… A prisão, reclusão, do jovem negro Rafael Braga em junho de 2016 e sua recente condenação por juíza politicamente orientada,  confirma o que acima afirmamos quanto o uso da modalidade punitiva como canal de manifestação de racismo… vide https://www.youtube.com/watch?v=lcDb315rC1k.   Mas por que continuamos a ver a prisão, o cárcere, a reclusão, como ápice de um processo que antes devia ser de indenização,  de compensação, de reequilíbrio, harmonização da estrutura social? Procuremos a causa de nossa cegueira na insidiosa expansão da metástase do cancro chamado racismo.

Quando o racismo puro  –  esse cáustico derivado do indefinível conceito “raça”, incrusta-se durante cinco séculos no tecido de todas as instituições de uma sociedade, caso do Brasil, tornando-se RACISMO INSTITUCIONAL, os membros dessa sociedade de modo nenhum  podem percebê-lo…é o caso do peixe de mar para quem “água é sempre água salgada”, distinguir outra espécie de água lhe sendo impossível. Para o brasileiro, sociedade é sempre a “racializada”, é espaço da confirmação da superioridade epidérmica… “É espaço que põe pra viver junto seres que se repelem”... Não há nem pode haver outra espécie de sociedade… Já imaginou igual número de almirantes, juízes, pecuaristas etc. negros? Na sociedade do imaginário brasileiro os brancos são o Bem, trouxeram ou inventaram o Bem, o Bom, são naturalmente titulares de tudo;  o resto, nada mais que o Mal…”Ora vejam, esses índios e quilombolas preguiçosos quererem ser donos de terra”…que se lhes cortem as mãos!.. – eis seu discurso.

O fato de hoje haver no Brasil coisa de mais de 500 mil encarcerados, dos quais, de um lado, mais de 60% sem condenação definitivamente passada em julgado (logo, na situação de seqüestrados) e de outro, muito menos de 0,1% podendo ser ao mesmo tempo classificados como brancos e ricos, http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/12/121226_presos_brasil_aumento_rw.shtml

constitui  ilustração aberrativa do racismo institucional brasileiro, ou seja, é a água, enquanto algo indiferente à nossa distinção perceptiva no que tange a  paladar, percepção anulada pelas incrustadas camadas de  cinco séculos de racismo institucional: não há racismo, senão quando o negro protesta e o reafirma, recebendo de volta o anátema: racista é você negro safado… Brasileiros, que podem ser figurativamente peixes de rio, de lagos e de mar, as gazes da alienação fazem com que nos assumamos “todos iguais perante a lei”, ou seja, peixes de mar, já que, da mesma maneira que para esses água é sempre salgada, para nós, por sermos todos iguais,  punição social deverá ser sempre o cárcere, a prisão, supostamente extensível a todos… A realidade, porém, não faz outra coisa senão negar o discurso da igualdade perante a lei. Se em períodos excepcionais, alguns dos desiguais desde os tempos da colônia – peixes de aquário, de rio, eventualmente são retidos pelas malhas da lei, cumpre reconhecer que a lei não pode ser igual para todos, mesmo  quando se quiser humilhar um peixe de aquário ou de água-doce cuja ação tenha sido vergonhosa à sua grei: primeiramente grita-se: “cadeia nele,  com isso querendo-se significar “pena de degradação social a esse traidor”, a qual ao se fazer cumprir, mostra a impossibilidade de o sistema, de água salgada, receber, abrigar, “punindo”, o peixe de aquário, de água-doce.

Reconfigurando nosso tema, dado o fato de o racismo, seja ele pessoal, privado  ou institucional – ser sempre maniqueísta – isto é, separar a realidade social entre dois pólos: O Bom e o Mau -, bastou que alguns brasileiros, “dos bons”, mal comparando, “peixes de água-doce” ou de aquário, começassem a ser encarcerados…para que todos admitissem haver diferentes espécies, não só de peixes, mas também de água: doce, salgada, salobra, ácida…Gente, embora salgada, continua a ser água mesmo!..Embora a gente toda hora diga o contrário, a lei não pode ser igual para todos...este aqui é peixe de água-doce, já esse é de aquário, não podem ser confundidos com aqueles, peixes de mar…poluído, por sinal!..Não dá pra colocar essa gente dentro de nossas cloacas…a lei tem que reconhecer que eles são diferentes…

Povo brasileiro, prisão jamais foi “o castigo”, senão, em determinadas fases históricas,  um momento, a plataforma de espera de um castigo. A sociedade racista pós-colonial jamais tratará suas castas tidas como superiores da mesma maneira que trata a massa, para ela ignara. O sistema prisional brasileiro foi feito para o ex-escravo.

A idiotia e barbárie do ser humano não é originária, isto é, não vem desde sua origem, é  deformação recente, muito recente, tendo como alguns marcos neste aspecto o momento em que “um dos piores castigos da experiência social dos seres humanos – a escravização do semelhante, começa a ser praticada, só e apenas, contra seres humanos de cor, os quais portanto deixam de ser “semelhantes”, passando a ser bichos, coisas. E se não estou muito enganado, isso começa a ser aceito sem contestação a partir de 1492 – façam suas pesquisas e tirem suas ilações…

Pena, castigo (na tradição da humanidade sempre a depender do status do apenado),  eram a indenização, a compensação, a mutilação corporal, a tortura em toda sua infinita gama, as violências morais, psicológicas – isto é, na esfera da intersubjetividade (dimensão de vivência deferida exclusivamente aos seres humanos), a exemplo da perda de status,  o degredo, o exílio, as galés, a escravização ou… a morte pura e simples,  direta, imediata…

Afastados os casos de vingança familiar, dramas no interior de dinastias, de loucura ou de extrema periculosidade do réu, a prisão, sempre a depender da classe social do apenado, não era a norma, ocorria sim como procedimento instrumental, como etapa provisória entre as ações de um processo de punição… O transgressor assumia a condição de custodiado pela autoridade judicial, não como se estivesse cumprindo pena, mas como aquele que está esperando sua pena…

A partir do momento em que segmentos da humanidade: a) por um lado, abertamente instauram e fazem por todos ser aceito o conceito e prática do racismo – cisão do seres humanos, pela cor  divididos entre Bons (senhores, os iguais, os semelhantes) e Maus (dessemelhantes, escravos, logo negros); e por outro lado, b) depois que esses segmentos (por acaso brancos) roubam, seqüestram os arquivos do resto da humanidade subjugada, alçando-se em demiurgos, superiores em relação aos demais, vide especificamente a apropriação européia de teses do acervo civilizatório da humanidade, com o apagamento da história africana por mais de cinco séculos,  fato a que chamam Renascimento e de Iluminismo, a partir desses momentos… incute-se no imaginário das pessoas, ou seja, na “superestrutura ideológica” das sociedades arrastadas pela voragem chamada ocidentalização do Planeta, a noção de que o castigo ou melhor, o ápice do castigo passa a ser o encarceramento, a prisão… O ato de prender, encarcerar, com toda a estrutura prisional que o acompanha,  é comparado à imagem de uma decapitação… aliás, por uma questão de “manifestação bizarra do inconsciente coletivo”,  essa decapitação é constantemente reencenada pelos presos em revolta em todas as prisões do Brasil. Paradoxalmente, essa noção quer confirmar que a sociedade européia (em relação aos “bárbaros” africanos e asiáticos) é boa, é justa, pois “prende, mas não mata”…Eis, porém,  que no fim do século XX o encarceramento sistemático do subjugado volta a ser atividade econômica terceirizada e geradora de fabulosa margem de lucro, os negros (vide EUA e Brasil) e os migrantes (Europa) suas vítimas potenciais numa época em que o capitalismo das nanociências e dos robôs deixa eternamente inúteis, sem função, bilhões de seres humanos…Olha aí as reformas trabalhista e da previdência urbana e no campo!

De que modo,   pergunta-se, uma sociedade, a brasileira, por exemplo,  vai resolver a questão de fato de que a transgressão das normas sociais ultrapassa os estreitos limites do seu maniqueísmo? Ou seja, os bons, os brancos,  também podem transgredir e transgridem impunemente… Responde-se:  a) impermeabilizando, ou melhor, fechando sua instituição judiciária à penetração de quaisquer outros segmentos sociais que não seja branco…b) sistematicamente atuando para que o “serviço” de distribuição da justiça tenha a contrapartida em moeda…no Brasil, justiça é pra quem tem grana…Racismo exige cada vez mais racismo…Eis o Brasil que nossos olhos insistiam em não ver.

Saudamos a soltura do compatriota José Dirceu, que por certo está sendo vítima de injustiça, dada a gana que por sua prisão, ou seja, por sua decapitação moral, midiática, mostram seus algozes…

*Ailton Benedito de Sousa, militante de esquerda, em 70 ou 71 jubilado, isto é, cassado em seu direito a matricular-se na 5ª.série  do curso de direito da Faculdade do Catete