por: Maria João Guimarães
Tarso Genro, antigo ministro da Justiça de Lula da Silva, diz em entrevista ao PÚBLICO que houve um “desencanto utópico” no PT quando este se tornou pragmático para governar. Nessa altura, surgiram “métodos ilegais”.
Foi ministro da Justiça de Lula, presidente interino com a missão de “limpar” o Partido dos Trabalhadores (PT), e faz parte de uma facção mais à esquerda que tem defendido uma via diferente para o partido. Diz que são precisas novas eleições para legitimar o Governo e que a crise económica só se resolve depois de solucionada a crise política.
É impossível ter um grande partido no Brasil que não esteja envolvido em corrupção?
Todos os partidos têm algum grau de envolvimento. O sistema político induz a isso. O financiamento empresarial induz também a corrupção porque há um sistema de troca. Mas o que está a ser feito na questão da corrupção do Brasil não é simplesmente a busca dos indivíduos ou grupos que cometeram estes delitos. Está a ser feita uma extinção da esfera da política, está a ser feito um processo de demonização dos partidos, que na verdade é um processo e extinção do sistema democrático moderno, porque não há nenhum que não funcione a partir dos partidos.
Esse movimento da procuradoria, da Polícia Federal, da Controladoria – órgãos fortalecidos pelo Governo Lula, por mim inclusive como ministro da Justiça – está sendo em parte utilizado para demolir os partidos e o sistema político brasileiro e no lugar disso o que vem é uma tecnocracia insensível, dogmática, que acha que pode governar sem partidos e sem política.
Quando foi nomeado presidente interino do PT (em 2005, na sequência do “mensalão”) tinha como objectivo “limpar” o partido da corrupção. Mas acabou por se afastar da corrida à liderança em desacordo com José Dirceu (antigo chefe da Casa Civil de Lula, duas vezes condenado por corrupção). O que aconteceu?
O que houve foi um desencanto utópico do partido que se tornou mais pragmático e se preocupou mais com a governabilidade. Nesse movimento de pragmatismo, houve pessoas que certamente usaram métodos não legais. Não foi em maior ou menor grau com membros do PT, mas certamente cometeram [crimes] e estão a responder por eles. Mas eu sou de opinião de que o partido não é uma delegacia e que não nos cabe a nós dizer se esta pessoa cometeu uma ilegalidade ou não. O que temos de fazer como auto-crítica é verificar quais foram as determinações políticas e programáticas e éticas que nos levaram a esta situação em que estamos hoje, que é uma situação de redução do nosso potencial político e de um certo isolamento na sociedade. Temos de avaliar o que nos levou a isso, e os indivíduos têm de fazer a sua defesa e ser julgados de acordo com a lei e a Constituição.
Descreveu a crise do PT como tendo pontos comuns com outros partidos de esquerda no mundo, mas no Brasil não há questões específicas?
O sistema obriga a presidencialismo de coligação, ou seja, que se forme uma maioria após a eleição. O Presidente começa a chamar partidos para compor a sua base. Isso tem dois efeitos negativos: o primeiro é que todos são obrigados a usar o orçamento público para contemplar regiões onde esses partidos têm força. A outra é que existe rebaixamento programático pragmático [secundarização do programa político do partido] para poder governar, isso afectou todos os governos desde a Constituição de 1988.
Mas o que ocorreu no período actual foi muito mais grave e mais profundo. Porque o deslocamento do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) da base do Governo levou a um ajuste radical na política orçamental que na verdade revogou o estado social da constituição de 1988. E você destruir e retirar direitos num país que tem uma classe trabalhadora com rendimentos bastante baixos e obteve recentemente a sobrevivência com as políticas do Governo Lula é muito diferente do que reduzir o poder de compra numa social-democracia estabilizada como aqui em Portugal ou Espanha. Os efeitos lá são muito mais graves, duros, e com mais possibilidade de anomia e confrontos sociais cuja gravidade não se pode prever.
E o que prevê agora?
O Presidente Michel Temer [no poder desde a destituição da Presidente Dilma Rousseff, do PT] está com uma rejeição de 70%, não tem condições de governar a não ser apoiado de maneira mecânica, sistemática, pelos grandes media brasileiros, extremamente conservadores, que não permitem uma livre circulação de opinião (que é diferente de liberdade de imprensa, essa nós temos no Brasil). Isso tem permitido um cerco mediático bastante conservador sobre toda a esquerda e centro-esquerda. Esse cerco também tem o objectivo – porque conseguiu apoio de parte do poder judiciário – de tentar retirar o Presidente Lula do tabuleiro político. O Presidente Lula tem hoje cinco processos instaurados contra ele e nenhuma prova.
Mas isso não se tornou ainda numa crise de Estado no Brasil. O que existe é uma instabilidade nas relações entre os poderes. Essa instabilidade pode ser resolvida se tivermos um adiantamento das eleições presidenciais até ao fim do primeiro semestre do ano que vem, porque aí teríamos um presidencialismo de coligação religitimado.
Quando se iniciaria este processo?
É provável que agora com a aprovação da PEC 241/55 [que limita os gastos públicos durante duas décadas], que na nossa opinião revogou o Estado social brasileiro, é provável que o Presidente Temer seja descartado pelas forças conservadoras porque está muito débil, e está a ser também investigado por questões [de corrupção] relacionadas directamente com ele. Então é provável que ele tenha cumprido o seu papel e pode ser que haja um acordo para a convocação de novas eleições. Nós, na oposição hoje, não temos maioria para aprovar uma emenda constitucional para eleições. Mas achamos que temos obrigação de formar uma maioria para retirar o país da crise. O país não sai da crise económica se não sair da crise política em que estamos metidos hoje.
Tem sido uma voz sempre crítica dentro do PT. Como é ser crítico há tanto tempo?
O PT admite correntes internas e há muito que integro a minoria. Nunca me senti incomodado, acho que o PT ainda tem um futuro positivo para contribuir e pode recuperar desta crise. Digo sempre que o conteúdo programático da esquerda está a mudar, a forma partido tradicional foi vencida, o partido vertical, com a direcção central, tem de ter cortes horizontais para se relacionar de maneira ampla com a base social e eleitoral mas também o conjunto da sociedade, e há uma mutação.
No passado houve cisões e correntes minoritárias do PT saíram. O que defende como alternativa?
Defendo que temos não só de reformular o nosso programa mas produzir um novo tipo de frente de esquerda em que o PT não seja necessariamente hegemónico. Hoje já não é problemático, já temos lideranças na sociedade que podem assumir essa posição. Se o Presidente Lula tivesse possibilidade, ele poderia ser o candidato natural dessa nova frente. Se não, acho que o PT deve se reportar as outras forças para discutir quem será o melhor nome, que não precisa de ser do PT.
Mas defende que Lula volte à presidência do PT?
Não, acho que ele não deve voltar para a presidência do partido – esse não deve ser o papel dele, deveria ser de uma liderança q transcende o PT. Acho que deste Congresso que vai acontecer [em Abril de 2017] vai sair uma liderança para estabilizar o partido, não vai ser um congresso para uma renovação profunda, nem programática nem na direcção.
O que é que em sua opinião o olhar de fora não percebe sobre o Brasil?
O mal-entendido de hoje é que o que está a acontecer no Brasil é uma luta moralista e moralizadora contra a corrupção: isto não é verdade. A luta contra a corrupção existe. Temos partes do poder judiciário, do Ministério Público, da Polícia Federal, que actuam segundo a lei, mas a luta política que está a ocorrer no Brasil perseguia um ajuste e a questão da corrupção foi usada para que houvesse condições para que houvesse um ajuste recessivo de fim do Estado social de políticas públicas de coesão social. É verdade que o Governo Temer reuniu uma confederação de investigados, denunciados e processados que estavam no Governo Dilma e na oposição. Não é um movimento moralizador da política brasileira – é um movimento que direcciona, produz e organiza um ajuste.