por: André Singer

Não carece qualquer gravação para saber que Michel Temer faltou com a sua responsabilidade no caso dos favores no edifício La Vue. 
 
Avisado pelo ex-ministro da Cultura em 17/11 que Geddel Vieira Lima usara o cargo público que detinha para obter benefício privado, cabia ao presidente da República demitir de imediato o titular da Secretaria de Governo – que só nesta sexta (25) pediu para sair – por grave desvio de função. 
 
O próprio mandatário confirmou, em nota na quinta (24), ter recebido a denúncia.
 
Segundo a mesma nota, porém, Temer decidiu apenas recomendar ao denunciante dirimir eventuais dúvidas na Advocacia-Geral da União (AGU). 
 
Mas quais dúvidas? Marcelo Calero não tinha dúvidas; tinha certezas. 
 
Procurou Temer para comunicar que sofria pressão para liberar obra na qual auxiliar próximo do gabinete presidencial comprara caro apartamento. 
 
Em lugar da esperada intervenção ética recebeu resposta, no mínimo, evasiva.
 
Ao reconhecer os fatos com tamanha candura, como se neles nada houvesse de errado, o texto emitido pelo Planalto desconhece o humor da atual opinião pública. 
 
Apoiado em Rodrigo Maia e na larga maioria congressual que derrubou Dilma Rousseff, o palácio supõe que novo impeachment seja impraticável. Por isso, cercado pela falsa segurança brasiliense, o bloco no poder perde de vista as mudanças em curso na sociedade e começa a pairar perigosamente no vazio.
 
De 2005 para cá, primeiro com a AP 470 e depois com a Lava Jato, começou a ser desmontado o modo de fazer política que vigorava desde a expansão do eleitorado de massa em 1945. 
 
Pode-se questionar por que, depois de 60 anos, foi justamente no primeiro governo eleito pelo campo da esquerda que se desencadeou esta ofensiva antissistêmica. 
 
Mas o fato é que há novos atores e métodos no palco (o Ministério Público, a delação premiada, a internet, para ficar apenas em alguns) e os velhos representantes soam deslocados na cena contemporânea.
 
Tal dissonância cognitiva explica, também, o incrível movimento de anistia ao caixa dois liderado pelo presidente da Câmara nesta semana. 
 
O suposto texto anistiante afirmava que doações não contabilizadas, não declaradas, omitidas ou ocultadas não seriam passíveis de punição até a entrada em vigor da lei em pauta. 
 
Como se as grandes investigações, os julgamentos sensacionais e a tremenda visibilidade dada aos dois itens anteriores nos últimos 10 anos pudessem ser jogados na lata do lixo.
 
Geddel Vieira Lima, cinco dias antes de renunciar ao posto, declarou: “Deixar o cargo por isso? Pelo amor de Deus!” (“O Estado de S. Paulo”, 20/11). 
 
A frase merece ficar para o registro futuro do esquizoide momento nacional pelo qual passamos.