por: Roberto Amaral
Da debacle das esquerdas[1] e das forças populares nas eleições municipais brasileiras de outubro deste ano[2] — fruto da cumulação de erros táticos e estratégicos, além de desvios éticos –, emerge um quadro sobre o qual é preciso refletir, para dele retirar os ensinamentos necessárias. Tarefa de quem quer aprender com a história para não ficar repetindo erros. São muitas as lições e a primeira é a falácia da conciliação de classes com a qual tanto namorou o lulismo no governo. Trata-se, porém, essa debacle, de derrota que não pode ser recebida com surpresa por nenhum observador de nossa cena política, pois foi anunciada (para quem quis ver e ouvir) pela prévia derrota no debate ideológico[3] e na disputa pela hegemonia. Mas esse fato objetivo não encerra a história toda e exige um mínimo de contextualização. É o difícil projeto deste pequeno texto.
O processo político que se traduz, no Brasil, também pelo avanço do pensamento e da ação de direita – entre nós em proporções desconhecidas desde a redemocratização de 1945 com a queda do ‘Estado Novo’[4] – guarda, sem dúvida, relações com os quadros internacional (nomeadamente a ascensão da direita nos EUA e na Europa) e latino-americano, de particular na América do Sul, com a crise venezuelana, a eleição de Mauricio Macri na Argentina, a consolidação da direita no Peru e, finalmente, a vitória do Não no plebiscito colombiano com o protagonismo do ex-presidente Álvaro Uribe, no papel de líder da direita ortodoxa. Por óbvio que sobre nosso quadro político-institucional agiram, e intensamente, os interesses norte-americanos, insatisfeitos, principalmente, com a política externa brasileira, sobretudo a que se praticou entre 2003 e 2011.
Não foi esse, todavia, o elemento decisivo.
Essas eleições não podem ser compreendidas fora da crise política do governo de Dilma Rousseff e da crise ético-política do Partido dos Trabalhadores-PT, nem da articulação que, com vistas ao golpe, reuniu o grande capital financeiro e o agronegócio, os grandes meios de comunicação de massa, setores significativos do Poder Judiciário e da alta burocracia estatal (como a Polícia Federal e o Ministério Público). Foi exatamente essa articulação que assegurou a vitória do ‘golpe de Estado de novo tipo’[5] (mas bem conhecido da História brasileira)[6], operado pelo Congresso Nacional mediante o impeachment que decretou a cassação do mandato legítimo da presidente, abrindo caminho para a instauração de um Estado autoritário em trânsito para uma ‘ditadura constitucional’ apoiada pelo Poder Judiciário.
Essa mesma articulação atuou claramente durante as eleições e é uma das responsáveis pelos seus resultados.
Crise ética
A história não fica bem contada se não vier à baila a crise ética que se abateu sobre as administrações Lula-Dilma, e sobre o PT e seus mais destacados dirigentes, acusados de supostos crimes de corrupção. Essas acusações, muitas atingindo mesmo a figura do ex-presidente Lula – ícone da esquerda brasileira e o mais importante líder popular de nosso campo –, ampliadas e exploradas pela direita e tonitruadas pelos meios de comunicação, levaram a crise para a domesticidade da política partidária, animando as reações oposicionistas e mesmo movimentos de massa. De uma forma ou de outra, consumado o impeachment, as ações do Ministério Púbico Federal e do Poder Judiciário – em andamento como moto-contínuo – se transformaram em verdadeira ‘caça às bruxas’, digna dos piores momentos do macarthismo norte-americano, voltada contra o PT (ameaçado de ter cassado seu registro junto à Justiça Eleitoral) e especialmente contra o ex-presidente, ameaçado de prisão, e contra quem foram abertos (e continuam sendo abertos) inumeráveis processos policiais e judiciais, todos de nítido fundo político, e todos tentando vincular sua imagem à de um político corrupto, com o claro escopo de desmoralizá-lo frente à opinião pública e às massas trabalhadoras.
As eleições foram travadas já com o país sob o regime Temer comandando a perseguição de seus adversários. A legislação eleitoral que as presidiu foi concebida para fortalecer os candidatos do poder e dificultar a eleição dos candidatos populares, ou seja, daqueles que não contavam com o apoio das máquinas políticas e econômicas. Assim, o tempo de campanha foi reduzido (para beneficiar os titulares de cargos públicos e os que têm exposição permanente nos meios de comunicação, como apresentadores de televisão e, de forma especial e abusiva no Brasil, os reacionários pastores evangélicos), a participação de partidos e candidatos no rádio e na televisão foi minimizada (candidatos de partidos pequenos, como o PSOL, tinham, na campanha majoritária, algo como 15 segundos de exposição contra uma média de cinco minutos de seus adversários), os debates foram reduzidos a um quase nada, premidos, sempre, por formatos esterilizantes em altas horas da noite.
As eleições foram ainda travadas com o país em retração econômica, com elevadas taxas de desemprego e inflação ascendente, mazelas que a sociedade, trabalhada pelos meios de comunicação, atribui ao governo de Dilma Rousseff.
Nem por isso as esquerdas brasileiras se uniram, e desunidas amargaram uma derrota sem precedentes desde a redemocratização de 1984. Assim, em um ano, teve de amargar dois significativos reveses, a vitória do impeachment (com largo apoio das classes médias e o silêncio das grandes massas) e a vitória da direita nas eleições locais que se acabam de realizar. Com esta derrota, o ciclo nascido com a Constituição de 1988 revelou-se agônico, e com ele falece o ciclo neo-desenvolvimentista, substituído pela associação mutuamente dependente do Estado autoritário com um neoliberalismo fundamentalista.
Sai fortalecido o projeto neoliberal
A emergência das esquerdas e das forças populares, iniciada com os movimentos que assinalaram o fim da ditadura militar (1964-1984), cede vez à ascensão da direita, com o deslocamento do centro, perdido pelas forças populares. É significativa a acachapante derrota das esquerdas no estado de São Paulo, a maior concentração proletária do país, seu mais dinâmico polo econômico, financeiro e cultural. Dessa vitória procurará apropriar-se o governo Temer, em busca de um mínimo de legitimidade, e dela se apropriarão as forças reacionárias, que aprofundarão sua campanha antipetista e anti-Lula. Sua anunciada prisão – objetivo das foças conservadoras perseguido em ação comum pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário — ficou mais fácil e mais próxima. Quando ocorrer, surpreenderá tanto quanto o assassínio do Santiago Nasar de García Márquez.
Em síntese, desse processo sai fortalecido o projeto neoliberal. A este propósito é importante ter em conta, como temos insistido em textos anteriores, que o objetivo do golpe não era ou é o impeachment (uma necessidade), nem a posse de Michel Temer (uma contingência). O projeto da direta com essa operação é a implantação de um regime de restrições aos direitos trabalhistas e previdenciários, o congelamento dos investimentos em educação, saúde, ciência e tecnologia, a desnacionalização da indústria nacional, o abandono do projeto de desenvolvimento econômico autônomo, voltando a reinar a dependência da política externa brasileira aos interesses dos EUA, com o fim da política de articulação com os países sul-americanos e a África, o enfraquecimento do Mercosul e dos BRICS, o fim dos projetos nuclear, cibernético e espacial brasileiros, por sinal, nossos principais projetos estratégicos. De tão antipopular, o projeto da direita, para sobreviver, poderá ter que transitar do autoritarismo para a ditadura.
Seja para a resistência de hoje, seja para a disputa eleitoral de 2018 – e eis a grande lição da crise–, não há alternativa para as esquerdas brasileiras fora de sua unidade como força hegemônica de uma grande frente ampla cujo espaço preferencial deve ser a Frente Brasil Popular, que vem atuando desde 2015 e já aglutina os partidos do campo progressista, o movimento sindical, setores significativos dos movimentos sociais, intelectuais e estudantes. Criada em 2015, animava seus fundadores a resistência ao golpe e logo essa Frente se constituiria em espaço privilegiado da articulação de esquerda, tornando-se responsável, ao lado de outros movimentos e frentes, pela resistência popular ao impeachment, e agora, ao governo usurpador, ilegítimo, de Michel Temer.
– Roberto Amaral “Escritor e cientista político, foi ministro da Ciência e Tecnologia do primeiro governo Lula, é autor de A serpente sem casca (da crise à Frente Popular)” “Escritor e cientista político, foi ministro da Ciência e Tecnologia do primeiro governo Lula, é autor de A serpente sem casca (da crise à Frente Popular)”.
[1] Em comparação com 2012 (última eleição municipal) o Partido dos Trabalhadores-PT (partido hegemônico da esquerda brasileira), perdeu 10 milhões de votos (que não foram desviados para nenhuma outra organização de esquerda) e 242 prefeituras (dados do primeiro turno) a o que corresponde 45% de seus prefeitos e 60% de seus vereadores.
[2] Envolvendo a eleição dos prefeitos e dos vereadores das Câmaras Municipais de todos os 5.570 municípios brasileiros, e mobilizando um eleitorado de 145 milhões (Dados do Tribunal Superior Eleitoral-TSE e do IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE).
[3] As limitações deste texto não permitem uma análise sobre as transformações ideológicas operadas na sociedade brasileira e que começaram a ficar evidentes a partir das chamadas ‘jornadas de junho’ de 2013. Registro apenas um elemento, ainda à espera de seus exegetas, que é o avanço da pregação dos evangélicos pentecostais, que, no Brasil, cresceram, de 1980 para 2010, de 3,2% para 13,3% da população. A propósito do voto de direita nas áreas de predomínio Pentecostal, ver A Geografia do voto nas eleições Presidenciais do Brasil: 1989-2006. Rio de Janeiro, Editora PUC-Rio, 2010.
[4] Assim se autodenominou a ‘ditadura Vargas’ (1937-1945).
[5] Generalizou-se a expressão para significar, em contraste com a tradição latino-americana, aqueles golpes levados a cabo sem o emprego da violência militar (Brasil-1964, Chile-1973, por exemplo), de que são exemplos os sucessos de Honduras (2009) e do Paraguai (2012). Com o mesmo sentido, os autores alemães consagraram o conceito de Ein kalter Putsche (golpe frio). Um desdobramento é a expressão ‘ditadura constitucional’, com a qual definimos o atual regime brasileiro. Outra característica sua é o que denominas como ‘golpe continuado’, sempre inconcluso e em processo, de implantação a um tempo gradual e continuada.
[6] Entre muitos outros exemplos: (1) em 1955, para assegurar a posse dos eleitos no pleito presidencial, Juscelino Kubitschek e João Goulart, ameaçada, o Congresso Nacional declarou ‘inabilitados para o exercício da presidência’ (figura desconhecida pelo direito constitucional brasileiro) o Presidente Café Filho e o vice–presidente (deputado Carlos Luz presidente da Câmara dos Deputados) e deu posse, seguindo ordem constitucional da sucessão ao presidente do Senado, senado Nereu Ramos e (2) em 1961, em face da renúncia do presidente Jânio Quadros e o veto dos ministros militares à posse do vice-presidente, João Goulart, o Congresso Nacional, consolidando um acordo, transformou, em uma noite, o regime presidencialista em parlamentar, reduzindo os poderes do presidente da República (eleito em um regime presidencialista) e assim assegurando sua posse.
Artículo publicado en la Revista América Latina en Movimiento: Democracia en jaque 19/10/2016
http://www.alainet.org/es/node/181138