Espera-se que os resultados lamentáveis sirvam ao menos para promover uma reflexão no campo progressista.
As eleições do último 2 de outubro realizaram-se como programadas e apresentaram os resultados previstos, fora um ou outro traço mais forte, uma demão de tinta mais carregada. Assim, a extensão da derrota geral das candidaturas progressistas e de esquerda, e, de outra parte, a vitória do candidato tucano já no primeiro turno das eleições paulistanas. Mas isso ainda não foi tudo.
Os números somados do absenteísmo com os votos nulos e em branco – 25% do eleitorado nacional – refletem as consequências de uma campanha projetada para ser despolitizada e despolitizante, anti-partidos, anti-política e anti-políticos, fragilizando ainda mais o que ainda nos resta de democracia representativa.
Vitória da direita, para a qual muito contribuiu a campanha sistemática dos meios de comunicação de massas, sujeitos no processo, tanto quanto o capital rentista (que financia todos os agentes), bem como o encontro da reforma da legislação eleitoral com o vezo autoritário da Justiça Eleitoral, para quem, desde as ordenações da ditadura, a participação popular nas campanhas eleitorais é um entrave, um complicador, ou, para usar expressão da moda, ‘um ponto fora da curva’.
Por isso, a Justiça Eleitoral cuidou, feito mãe zelosa, da Lei Orgânica dos Partidos, conjunto de normas autoritárias e cerceadoras da vida política com a qual os militares controlavam o processo eleitoral. Por isso ela continua, faina de décadas, atuando com se Legislativo fôsse, sempre cerceando a manifestação politico-popular em benefício dos situacionismos. Daí, a criminalização da politica seria um passo de pernas curtas..
A legislação que presidiu o pleito de 2016, obra de Eduardo Cunha, e a administração do processo eleitoral, sob o comando de um TSE presidido pelo inefável Gilmar Mendes, uniram-se no propósito bem alcançado de reduzir ao mínimo o poder decisório do eleitor, induzido, com o concurso solerte dos meios de comunicação de massa, a condenar a política, apresentada como responsável por todos os males, e a afastar-se dos candidatos de um modo geral, anatematizados como uma massa só de corruptos.
Para esse efeito o tempo de campanha foi reduzido, a participação de partidos e candidatos no rádio e na televisão foi minimizada, os debates reduzidos a um quase nada, premidos, sempre, por formatos esterilizantes em altas horas da noite. Por fim, e não menos importante, tivemos a multiplicação de siglas caça-níqueis promovida lá atrás pelo STF, que contribuiu ainda mais para a pulverização da manifestação eleitoral.
Enquanto as ruas se esvaziavam, transformando em rotundo silêncio o que antes se comemorava como ‘festa da democracia’, os meios de comunicação levavam ao paroxismo a desmoralização da política de par com seu facciosismo partidário.
No final das contas, a velha mídia, na verdade o maior partido da República, foi a grande vencedora dessas eleições, principalmente em face de sua atuação antes do início da campanha eleitoral propriamente dita.
O fracasso eleitoral das organizações progressistas e de esquerda, e o correspondente avanço das ações e do pensamento de direita, são o ponto de partida de qualquer análise – e não basta dizer que o que hoje se observa é, uma vez mais, a crônica de uma derrota anunciada. E muito menos, devem as esquerdas culpar a direita pela derrota, pois esse é o papel histórico do adversário de vida e morte que, aliás, jamais se deixou iludir pela fantasia da conciliação de classes.
E, de novo, isso ainda não é tudo, pois essa derrota (a um só tempo eleitoral e política) deve ser vista no contexto da crise brasileira, com seus ingredientes corriqueiros, o autoritarismo larvar, a hegemonia do capital rentista, o monopólio ideológico dos meios de comunicação de massa, a degeneração dos sistemas partidários e representativos. E, como sempre, as dificuldades das esquerdas em compreender a imperatividade das políticas de aliança.
Numa leitura mesmo impressionista é preciso ver, no processo social, transformações infraestruturais profundas – que na geologia lembram a movimentação de placas tectônicas –, surpreendendo os sismólogos que não souberam ler os primeiros deslocamentos políticos das grades massas. Idealisticamente presa no tempo, pensou a esquerda governante que o processo histórico conhecia o auto-congelamento e que, portanto, as condições eleitorais favoráveis de 2002, 2006 e 2010 eram, ora imutáveis, ora repetitíveis.
Advertências não faltaram.
Presa a uma coalizão partidária que os fatos iriam condenar como suicida, não soube essa esquerda entender as movimentações de rua de 2013; teimou em não compreender o real significado das dificuldades da reeleição de Dilma em 2014. A partir da guinada conservadora simbolizada pela ascensão de Joaquim Levy ao comando da economia, a leitura do processo social já dispensava prospecção para quem quisesse ver, e vendo não recusasse a realidade.
O que foi o ano de 2015, com nosso governo acuado política e estrategicamente, em contínua sangria, prenunciava o que viria a ser o discurso do pleito de 2016, realizado em plena recessão econômica, travado em clima de denúncias de corrupção selecionadas, com foco exclusivo e incansável e inesgotável no PT e em Luiz Inácio Lula da Silva, por razões que não podem surpreender o observador minimamente ligado ao tempo real da vida.
A direita sabe o que quer, e age em função de seus projetos.
É preciso repetir à exaustão que o golpe não se consumou com a deposição de Dilma Rousseff, e que muitas águas ainda rolarão. O impeachment foi uma operação necessária, enquanto a posse de Michel Temer atende a uma continência.
O grande objetivo (de que a cassação de Dilma Rousseff e a posse do vice são instrumentos), é a instalação do programa neoliberal, anti-nação e anti-povo, delineado pela “Ponte para o Futuro” (na verdade, um projeto de retomada do passado) que se transformou em plataforma do governo ilegítimo. E este projeto está em curso com o silêncio dos liberais, a conivência militante do Congresso e do Poder Judiciário, e os aplausos da grande mídia. Para sua implementação a direita e os conservadores daqui e de lá de fora podem até recorre à ditadura, como o fizeram em 1964.
Examinando o processo histórico como se fosse ele uma tela de museu, nossos estrategistas se esqueceram de que em 2006, quando se reelegeu, Lula comandava uma economia que crescia 4% ao ano e que em 2010, quando elegemos Dilma Rousseff, a alta do PIB chegara a 7,6%. Não nos demos conta, em 2014, que o crescimento do PIB caíra para 0,1% e a taxa de desemprego estava em 6,8%. E nos surpreendemos com a dificuldade de reeleição de Dilma!
A política havia decidido, perigosamente, ignorar a economia.
E nosso governo se instala anunciando um ajuste fiscal recessivo. Em 2015 o desemprego chegou a 8,3% e a retração econômica a 1,2%, com uma inflação de 9,5%. E nos surpreendemos com as movimentações de rua! Estavam dadas as condições objetivas para o golpismo, levado a cabo por uma aliança reacionária mais ampla do que aquela que possibilitou o golpe de Estado de 1964.
Em 2016, ainda responsabilizados pela recessão (contração de 3%) e taxa de desemprego de 11,3%, fomos ao pleito desguarnecidos estrategicamente, o que apenas serviu para aumentar nossas perdas, que se explicam por tudo o que foi dito acima, mas se explicam também pela nossa dificuldade de, superando distinções secundárias, operar a política de Frente. E esta é uma das lições a estudar.
Que esse lamentável pleito sirva para isso, é o mínimo que podemos desejar.
Essa Frente, a alternativa de nosso campo, para ter sentido, haverá de ser ampla, e só será ampla se incorporar os diversos setores democráticos, o capital produtivo e os setores progressistas e populares que compõem a sociedade brasileira. Cuidando de evitar todas as formas de hegemonismo (lamentavelmente tão presentes em nossa vida real!), caber-lhe-á incorporar todos aqueles que se sentem identificados com a luta em defesa da democracia, do desenvolvimento autônomo, do progresso social, da defesa da soberana nacional, do combate a todas as formas de desigualdade, a começar pelas desigualdades econômicas e sociais.
Essa Frente Ampla deve constituir-se em torno de um Projeto Nacional que se contraponha ao projeto neoliberal. Seu núcleo pode ser a Frente Brasil Popular, que já agasalha os partidos do campo progressista, o movimento sindical, movimentos sociais, intelectuais e estudantes. Construir a Frente Ampla é, pois, hoje, o desafio de todos aqueles que estiverem convictos da necessidade de resistir à onda conservadora e à temporada de caça-direitos, em transição para o Estado autoritário.
Roberto Amaral