O Judiciário deu mostras, na terça-feira (27), de inabalável inapetência por cumprir sua razão de ser quando o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), de uma penada, anulou todos os júris que se ocuparam do massacre do Carandiru, praticado 24 anos atrás.

A matança de 111 presos ocorreu em 2 de outubro de 1992. Só em 2001 viria a primeira condenação: o comandante da investida, coronel Ubiratan Guimarães, viu-se sentenciado a 632 anos. Em 2006, contudo, a decisão foi revertida pelo TJ-SP (meses depois, o coronel seria encontrado morto, em circunstâncias mal esclarecidas).

Seus superiores, o então governador Luiz Antonio Fleury Filho (PMDB) e o secretário da Segurança, Pedro de Campos, jamais tiveram sua responsabilidade escrutinada por uma corte judicial.

De abril de 2013 a dezembro de 2014 realizaram-se quatro júris sobre a conduta de policiais envolvidos no morticínio; 74 deles saíram condenados, com penas de 48 a 624 anos de detenção.

Os agentes nunca foram encarcerados. Esperaram em liberdade, quase um quarto de século depois das cenas dantescas em que se envolveram, enquanto a Justiça paulista conduzia o processo como quem não quer desfecho algum.

Ainda faltam os votos de dois desembargadores, mas os três já proferidos asseguram a anulação dos julgamentos realizados.

Sabe-se lá se e quando serão refeitos.

Como se não fosse descaso suficiente diante de tamanha barbárie, existe a possibilidade de que os desembargadores tornem a situação ainda mais impensável e acompanhem o relator, Ivan Sartori, que vitimou a Constituição e a legislação penal ao ignorar a soberania do Tribunal do Júri e votar pela absolvição dos 74 PMs.

“Não houve massacre. Houve obediência hierárquica. Houve legítima defesa. Houve estrito cumprimento do dever legal”, sustentou o ex-presidente do TJ-SP.

As circunstâncias eram sem dúvida complexas. Reconheça-se que os policiais não poderiam saber se os presos detinham armas de fogo; que a iluminação fora cortada, escorria água pelas escadas, barricadas bloqueavam a passagem, havia fogo nos corredores. Pode-se imaginar que os policiais agiram sob elevadíssima tensão.

Afirmar que não houve massacre ou qualificar como legítima defesa o assassinato indiscriminado de pessoas sob custódia do Estado, porém, é uma enormidade. Basta dizer que nenhum PM saiu baleado, ao passo que, em um dos pavimentos, 90% dos mortos receberam tiros na cabeça.

Com sua decisão, os desembargadores confirmam que, no Judiciário, ainda resiste a noção bárbara de que certas vidas nada valem, podendo a polícia delas dispor como bem quiser —e depois contar com assegurada impunidade.

(Editorial da Folha de S. Paulo, edição de 29 de setembro de 2016)