Nas negociações com líderes do apartheid na África do Sul, Mandela respondeu que “renunciar à violência depende dos senhores, não de nós”, aduzindo, numa mesa de negociação: “Cavalheiros, não é tarefa minha resolver o seu dilema para os senhores”.

Nas negociações com líderes do apartheid na África do Sul, Mandela respondeu que “renunciar à violência depende dos senhores, não de nós”, aduzindo, numa mesa de negociação: “Cavalheiros, não é tarefa minha resolver o seu dilema para os senhores”.

Tenho respeito democrático pelos chamados “políticos tradicionais” que não são corruptos e fazem da política uma profissão. Tratam a ação política, como se ela fosse uma carreira profissional, como faz um médico, um advogado, um engenheiro, um jornalista, quando corretos, cuidando de “vencer na vida” sem violar as leis e procurando – segundo a sua visão de mundo – cumprir um certo papel social, defendendo interesses que lhe parecem positivos para o seu eleitorado. É da democracia. Não concordo, porém, que a política seja tratada desta maneira e entendo que aqueles que abraçam uma perspectiva de esquerda, não podem se comportar como políticos tradicionais. Os sucessivos graus de diferenciação dos políticos de esquerda, em relação aos políticos tradicionais, ocorrem no “dia à dia”, mas os momentos mais decisivos se concentram em processos de crise. Nestes, é exigível dos políticos de esquerda uma coerência que não pode ser exigida dos políticos de “profissão”, pois o profissionalismo é normalmente conservador e a doação a uma causa é uma opção, que se faz por ideologia. A síntese do episódio que vou tratar foi bem retratada pela imprensa tradicional, na Newsletter do “Estadão”, em 14 de julho, com a seguinte manchete: “Maia derrota centrão com ajuda do Planalto e vai presidir a Câmara”.

O tema que estou propondo a debate não é um tema fácil. A relação entre tática e estratégia, tática e ética, finalidade (teleologia) e estratégia, meios e fins, causalidade e acaso, é extremamente difícil e geradora de dúvidas, em todas as pessoas de bom senso. O episódio da eleição do Presidente da Câmara, dia 13 de julho último, no qual uma parte do PT – ao que se sabe estimulada por Lula – tentava apoiar já no primeiro turno o deputado Rodrigo Maia (dos Democratas), depois (junto com o PMDB), buscava formar maioria para eleger o deputado Marcelo Castro, é emblemático. A opinião que externo sobre o assunto não tem a finalidade de desqualificar os companheiros que optaram por estas estratégias nem lhes faltar com o respeito. Meu objetivo é tentar demonstrar que a solução dada, para aquele impasse político, leva o PT para a vala comum e pode definir os nossos deputados e dirigentes, inclusive perante a nossa própria base social, como meros políticos profissionais.

Refiro-me, como políticos profissionais, também aos que superestimam as suas funções no Parlamento e tendem achar que os momentos mais importantes da democracia só se realizam ali, abdicando de um projeto político “radical” (naquele sentido clássico marxiano, de “tomar as coisas pela raiz”), no qual o Parlamento é um elemento importantíssimo, mas que jamais esgotará as dimensões mais estratégicas da Política: o poder econômico às vezes é muito mais forte que a vontade do Parlamento e a movimentação da sociedade, outras vezes, corrige as suas limitações determinadas pelo domínio de classe, que ele reflete no seu cotidiano.

Com o risco de ser um pouco esquemático, mas com razoável aproximação da realidade, pode-se dizer que circulam duas grandes avaliações sobre o Golpe. A primeira, que o evento golpista gira em torno da questão da corrupção. O Golpe, assim, seria uma oportunidade aberta pela forte reação estatal e social contra a predação secular do Estado brasileiro, que permitiu uma Santa Aliança – apoiada pelo oligopólio da mídia – dos neoliberais com os corruptos mais tradicionais (quando estes não coincidiam), para assaltarem o poder, sem o propósito mais explícito do que defender-se das incursões da “lava-jato”. Uma segunda hipótese – a qual eu me filio – é que a questão da corrupção foi meramente contingente: a agenda da corrupção, que é real, foi falsificada pelo oligopólio da mídia como se fosse uma questão “nova” (leia-se petista) e central do Estado brasileiro. Esta mensagem política articulou grupos sociais, setores de Partidos e a inteligência neoliberal para – como momento predominante do seu movimento – adequar o Estado às necessidades do “ajuste” universal do capital financeiro. Na minha opinião, a vitória de Maia (não estou tratando de equacionamentos morais) fortalece esta possibilidade e dá coerência ao Governo Temer, como instrumento destas reformas do grande capital e dos setores médios rentistas mais conservadores, contra tudo que é mais democrático e inovador na sociedade brasileira.

Embalados pela teoria do “menos pior”, a maioria dos deputados petistas – orientados pela Executiva do Partido – entrou num processo de conchavos sem transparência pública e não percebeu que tanto Marcelo Castro (que passou a ser candidato de uma grande parte do PMDB), como Rodrigo Maia (candidato do DEM, do PSDB e da outra parte do PMDB) necessariamente jogariam o jogo do Governo. Assim procedendo, o PT perdeu a oportunidade de sinalizar para a sociedade e, especialmente, para a sua base social, que era necessário abrir um tempo de novas alianças, de novos sentidos às coalizões governamentais, de um giro programático consequente. Giro que abandonasse a fantasia de exercitar a democracia social sem redistribuir renda, internamente, convivendo com a subordinação da economia e das políticas de Estado à tutela predatória dos custos da dívida pública, definidos pelo rentismo global. A arma mais potente contra a social-democracia, para dilapidação das funções públicas do Estado, não é o combate à corrupção, que interessa a todos os cidadãos de bem, mas são os ajustes pautados mundialmente, que centram seus sacrifícios nas classes trabalhadoras do setor privado e do setor público, nas pequenas médias empresas, vinculadas ao consumo popular e nos excluídos e deserdados, que recebem subsídios do Estado para a sua sobrevivência.

Na primeira hipótese analítica – que tem a questão do combate à corrupção como “centro” da crise – o “momento predominante” do nosso desequilíbrio institucional, seriam as ações penais em andamento, no seu lado dirigido e manipulatório, que facilitariam o clima político para o “ajuste”. Na segunda hipótese – que vê no ajuste o centro da crise política – a “exceção” em curso e o nosso “déficit” democrático escancarado é, predominantemente, uma necessidade que fez da corrupção o seu ponto de unidade mítico. O impedimento da Presidente seria, nesta segunda hipótese, uma desobstrução feita de maneira autoritária, pela nova hegemonia de direita no país, tutelada plenamente pela grande mídia: para cumprir o ritual do “ajuste”, a Presidenta que se negava a fazê-lo de forma plena precisaria ser removida. Esta diferença é fundamental, porque a direita neoliberal, a extrema direita e o conservadorismo, quando se uniram na eleição de Rodrigo Maia, acordaram a continuidade do ajuste (com o apoio de Temer) e colocaram a derrota de Cunha (já morto politicamente), como tributo aparente ao combate à corrupção. A estratégia da maioria da bancada do PT estava a condenada, portanto, desde o começo – com sua dependência estrutural dos movimentos do PMDB- a funcionar como uma linha auxiliar do ajuste e do conservadorismo mais consequente, que, no momento mais propício, se separou de Cunha e dos seus rastros de venalidade e corrupção.

É diferente sermos derrotados colaborando com os inimigos da democracia, que defendem tanto o ajuste como o autoritarismo golpista, de sermos derrotados resistindo e lançando sementes para o futuro. Porque a derrota era certa, em qualquer das hipóteses, e a melhor das escolhas seria fazer, do momento, uma ponte para o futuro: a hora – depois de duras provações durante os Governos Dilma – de abandonar a nossa dependência peemedebista e promover – no sítio mais agudo da crise – um momento de dignidade da política. Momento que fundiria uma ética da responsabilidade, em relação aos valores da esquerda, com uma nova estratégia democrática (uma nova teleologia), para disputar novamente o poder. Mas fazê-lo com outros conteúdos morais e políticos, com um programa de reformas distinto dos programas neoliberais do “ajuste”. Analogia não é igualdade, já se disse muitas vezes, mas comparações históricas por analogia, são lições de vida que vão muito além das contingências imediatas da política.

Em 1988, Mandela ainda era prisioneiro do regime racista da África do Sul, mas já dirigia – de dentro da cadeia – as difíceis e demoradas negociações políticas para o fim do regime do “apartheid”. Foram feitas, a partir deste ano, sucessivas reuniões secretas num elegante Clube Militar, dentro da Prisão de Pollsmoor, tendo como intermediários iniciais o Ministro da Justiça, Kobie Coetsee e o General Willemse, alta autoridade militar do país, que mantinham informados o Primeiro Ministro P.W. Botha e a alta cúpula do Governo. O país se encaminhava para uma Guerra Civil, onde se misturariam as questões nacionais, as questões sociais graves que a África do Sul atravessava (com as riquezas concentradas na minoria branca), o ódio das elites brancas contra a resistência do Congresso Nacional Africano (Frente Unitária contra o “apartheid” e pela democracia), composta também por milhares de brancos de esquerda ou simplesmente não racistas. Certamente, se esta Guerra Civil prosperasse, o país seria arrasado e a democracia social e racial, se vencesse, dificilmente seria erguida de forma minimamente decente, num país em ruínas. Mandela assume a Presidência da República seis anos depois (1994), depois de longas e duras negociações, que às vezes estiveram por um fio, dada a radicalização da violência policial do regime e a capacidade de resistência, inclusive militar do CNA.

Mandela comunicava-se, ou legalmente ou clandestinamente, com seus camaradas presos mais próximos ou que estavam na clandestinidade – com estes, por meios ilegais para o regime – Raymond Mlaba, Andrew Mlageni, Oliver Tambo, Walter Sisulu e tantos outros dirigentes ilustres que apresentavam as suas posições favoráveis, contrárias, ou as suas reservas às negociações entabuladas pelo Mandiba. De parte do governo, a pressão era para que o CNA se separasse do Partido Comunista e os seus militantes, em bloco, renunciassem à luta armada, o que, segundo a proposta do Governo, ocasionaria a imediata liberdade de Mandela e o processamento de uma transição democrática, para um regime, que até poderia aceitar uma maioria negra governando. Mandela responde que “renunciar à violência depende dos senhores, não de nós”, aduzindo, numa mesa de negociação: “Cavalheiros, não é tarefa minha resolver o seu dilema para os senhores”. E acrescenta: “devem se comunicar com seu povo e informar que não poderia haver paz nem solução para a África do Sul se eles não sentassem para conversar com o CNA”.

Quando nas grandes negociações ou debates políticos, a estratégia de quem está coagido se volta para resolver os problemas dos adversários ou inimigos, o que se tem é rendição, não um movimento tático. O que se tem é diluição política e moral, que cala fundo -para o bem e para o mal- em toda a sociedade, que acompanha ou participa do processo político. Não se tem, nestes casos, a conquista de um novo espaço negocial ou um novo patamar de diálogo. Foi o que aconteceu com meu Partido neste episódio da Câmara, no qual o PT -presumindo a conquista de um espaço novo para fazer a boa política republicana- conciliou com os piores vícios da República. E ajudou a fortalecer o ajuste neoliberal, isentando o Governo Temer das suas relações com o centro político da corrupção, que o elegeu indiretamente Presidente da República. Quinze deputados da nossa bancada, ao que parece, estão muito próximos ao exemplo de Mandela e se rebelaram contra esta tática suicida, digna de políticos profissionais, que – ainda creio – a maioria dos nossos companheiros não o são. O que restou foi apenas uma manobra parlamentar mal sucedida, com efeitos negativos graves. Os quinze demonstram, porém, que ainda há um pouco de ar no porão burocrático em que respiramos. Mas ele está no fim.

Quando Mandela, já com mais de vinte anos de cárcere, repele a proposta de Bohta, para romper com o Partido Comunista em troca da sua liberdade, ele mostra que existem momentos – em benefício da boa política – que os princípios às vezes são a própria fusão da tática com a estratégia, da ética com as finalidades. Disse Mandela, naquela oportunidade: “Qual é o homem honrado que deserta um amigo de toda uma vida, às instâncias de um adversário comum, e continua a gozar de alguma credibilidade frente ao seu próprio povo?” Acho que o PT, ao insistir na sua estratégia política de aliança com um centro que não é mais centro, com setores de um Partido que promoveu e organizou a aventura golpista, está perdendo a credibilidade, agora “perante o seu próprio povo”. Analogia não é igualdade, mas semelhança. Como a bancada do PT e sua direção, vão explicar à sociedade e aos nossos próprios adversários de boa fé, esta submissão às fontes do golpismo, é difícil de prever. Mas Mandela, seguramente, não servirá de referência.

(*) Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.