Sem legitimidade, sem voto e sem popularidade, o vice enfrentará, logo, o descontentamento profundo
O golpe de Estado, que se consolida a cada dia, realiza-se mediante a usurpação do mandato de uma presidente legitimamente eleita, que ninguém crê haver praticado crime.
Aparentemente fechando um ciclo, o do desenvolvimentismo nacional-popular, esse golpe parlamentar-midiático-judicial operado no Congresso Nacional abre espaço para uma nova fase de conservadorismo, anti-popular, anti-trabalhista, mediante a instalação de um governo conservador, comprometido com o que há de mais atrasado na política brasileira.
Uma vez mais, e talvez ainda não pela última vez, a direita interrompe, a frio, uma experiência tímida de integrar socialmente os pobres por meio de um projeto de conciliação de classe, ilusão que dominou o segundo e bom governo Vargas e presidiu o lulismo (um conjunto voluntarioso de ações ainda carente de teorização); ilusão que esbarrou na renitente resistência oligárquica a qualquer proposta de mudança, reacionarismo que aflora com maior virulência nos períodos de crise econômica.
O alienado apelo à conciliação – no caso dos governos do lulismo, uma reiteração dos erros que levaram à composição com os militares no ocaso da ditadura – serviu apenas para deixar mais confuso e errático o projeto de origem na centro-esquerda.
De um lado o programa do PT, de outro a ‘Carta aos Brasileiros’. De um lado Henrique Meirelles e Antonio Palocci, de outro a tentativa de promover a emergência das massas mediante o combate às desigualdades sociais. Ou, Joaquim Levy recessivista comandando a economia de um governo ideologicamente comprometido com a inclusão e o desenvolvimentismo. Daí sua errância pendular.
O que será esse novo ciclo, qual será sua duração, é impossível desde já prever. É justo supor, porém, que a crise brasileira – das esquerdas e dos governos de centro-esquerda – não é um fato isolado, pois dialoga com o avanço da direita em todo o mundo, e mais particularmente na América do Sul: Argentina, Peru (a presidência está sendo disputada por dois candidatos conservadores) e Venezuela (em crise sob todos os aspectos).
No que nos diz respeito não devem passar sem consideração nosso papel político regional e nossa presença no cenário internacional como a 7ª economia no mundo.
A existência de uma articulação político-militar norte-americana, envolvendo recursos políticos, materiais e logísticos nas conspirações contra os governos Vargas (1954) e Jango (1964), está hoje fora de questionamento.
Não afirmo que a História se repete, mas é preciso registrar as dificuldades dos EUA de conviverem com uma política externa brasileira “ativa e altiva”, para usarmos uma feliz expressão de Celso Amorim.
Essas dificuldades ocorrem desde Jânio Quadros (1961), à exceção de Castelo Branco (1964-1967) no mandarinato militar, de Fernando Collor (1989-1992) e de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
A política externa conheceu seguidos momentos de atrito com a política do Departamento de Estado, seja no palco multilateral, seja no âmbito regional. O primeiro deles foi o esvaziamento, pelo Brasil, do projeto da Alca, contraposto pelo fortalecimento do Mercosul; pela criação da Unasul; do Conselho de Defesa da América do Sul; da Comunidade de Estados Latino-Americanos e do Caribe-Celca (primeira tentativa de articular apenas nações dessas regiões); e pela recusa em transformar nossas Forças Armadas em milícia contra o narcotráfico.
Especial destaque cobra a constituição dos BRICS, a abertura para o comércio com o hemisfério Sul e de particular com a África, e a aliança comercial com a China, que se transformou em nosso principal parceiro econômico.
Em síntese, ao restabelecer a política externa independente, fazendo cessar a dependência levada ao extremo nos governos Collor e FHC, a chamada “era Lula” adotou um protagonismo jamais bem assimilado.
No plano estratégico-militar, na sequência da Estratégia Nacional de Defesa, optou pela parceria com os suecos – que ainda estão fora da OTAN – para a fabricação de nossos caças supersônicos e associou-se aos franceses para a renovação de nossa frota de submarinos convencionais e para a construção de nossos futuros submarinos de propulsão nuclear.
Como as reações a essa política contribuíram para desestabilizar o governo Dilma Rousseff é tema por estudar, certamente apenas quando, como ocorreu relativamente aos eventos que conduziram ao golpe de 1964 e sustentaram a ditadura, os arquivos dos EUA forem abertos ao público.
Não deve ser irrelevante o fato de em todos os países tomados pela direita, um dos primeiros enunciados seja o abandono de políticas externas independentes, com a consequente e imediata restauração da dependência aos interesses da geopolítica dos EUA.
Entre nós não está sendo diferente. Esse servilismo anti-nacional já foi anunciado e para executá-lo, jogando ao lixo todo e qualquer resquício de política externa digna, ou simplesmente ‘altiva’, ninguém melhor do que o senador José Serra (PSDB), saudosista da política de adesão automática aos EUA, adversário de nossa ação continental, adversário de nosso protagonismo, adversário do Mercosul, expectante de alguma coisa que lembre a Alca.
Ninguém melhor do que ele para negociar a internacionalização, a preço de banana – aproveitando-se contra nós da queda do preço do barril do petróleo – de nossas reservas do pré-sal.
O governo provisório do vice interino é a decorrência lógica das alianças políticas, institucionais e econômicas que garantiram o golpe. Nacionais e internacionais, logísticas e financeiras, políticas e judiciais, envolvendo um STF partidarizado, que oscila entre a judicialização da política e a politização da Justiça, essas alianças são, sobretudo, de interesses. E cobram seu preço.
Tanto o Congresso (afinal a deposição de Dilma Rousseff resultou de um golpe parlamentar) quanto o STF sabem quanto foram decisivos e estão cobrando o preço devido. O Congresso reivindica ministérios e o STF negocia aumento de salários e protagonismo, digno de um Poder Moderador, arcaísmo monárquico se infiltrando em nossa República, sereníssima.
Daí o aspecto frankensteiniano do novo ministério liliputiano, só de homens, só brancos, só ricos: contempla os interesses das bancadas da bala, do boi, dos bancos e da bíblia, o que há de mais primitivo e conservador nas seitas evangélicas fundamentalistas, um aglomerado de interesses unificados pela decisão de chegar ao poder a qualquer preço, para nele locupletar-se; ecoa os interesses dos representantes da velha politica, os filhos e os netos da velha oligarquia patriarcal e patrimonialista, em plena sintonia com o atraso, e sempre serviçais do grande capital, da grande propriedade, latifundiários, grileiros e desmatadores, no geral velhos beneficiários da privatização do Estado.
À baixa credibilidade do vice presidente interino, cujo sucesso revela as possibilidades da mediocridade na política, soma-se a péssima qualidade do ministério com o qual afronta as esperanças nacionais.
Com jeito e pretensões de quem veio para ficar, Michel Temer já disse o que pretende: seu projeto, seu ânimo, sua vontade, seu prazer é servir sem constrangimento ao retrocesso político-social. A apenas isso se reduz seu programa, seu projeto, seu discurso.
Será, enquanto durar (praza aos céus que seja breve), um governo binário, do não aos interesses nacionais e populares, do sim aos interesses do capital rentista e da burguesia subsidiada da Avenida Paulista.
Governará para a dívida e não para a produção; levará a ferro e fogo o ajuste fiscal anti-povo que sua base de hoje negou à presidente Dilma Rousseff, e criará novos impostos; para financiar os lucros do capital, já anunciou, reduzirá os gastos com saúde, educação e inclusão social, a saber, aquelas despesas que mais de perto dizem respeito às camadas mais pobres da população.
Governará contra os pobres e uma de suas primeiras medidas será a alteração da lei da previdência, aumentando a idade mínima para a aposentadoria, o que só prejudica os pobres, pois só pobres dependem da previdência e só os pobres ingressam cedo no mercado de trabalho.
Sem legitimidade, filho e fruto da traição e da truculência institucional, sem voto e sem popularidade, o vice governante, pretendendo perpetuar-se no poder, enfrentará, logo, o descontentamento profundo, e mais cedo do que se poderia esperar será o alvo da reação popular, aquela mesma que ajudou a mobilizar contra a presidente Dilma.
O governo Temer, marcado pela usurpação e pelo perjúrio, é um governo despudoradamente na contramão da opinião pública e do pronunciamento eleitoral de 2014. Nesse sentido é uma fraude.
Ilegítimo de origem, nasce sob a contestação popular. Filho de um golpe parlamentar, dirigido de fora pela mídia monopolizada, seu ministério é o pagamento de uma promissória: afinal, o golpe foi perpetrado a partir da Câmara dos Deputados, um meio pantanoso que reflete a miséria moral de seu comandante (que mesmo afastado ainda a comanda!), o inefável Eduardo Cunha.
Temer paga os votos do impeachment e, ao mesmo tempo, buscando uma larga maioria, tenta se vacinar contra os riscos de um governo sem base parlamentar, como o de Dilma Rousseff, sem base parlamentar confiável exatamente porque se entregou ao PMDB, essa empresa de interesses dirigida pelo hoje presidente interino. Fruto da crise que cevou, o governo provisório que busca a permanência será o governo da crise permanente.
Trata-se de um governo exumado do passado.