por: Tarso Genro
Aos que festejam a condução coercitiva do Presidente Lula é bom informar que os acontecimentos de sexta-feira, dia 4 de março, marcam uma profunda mudança no Estado de Direito em nosso país. E que essas mudanças, se consolidadas, dependendo dos governos e da correlação de forças dentro do Poder Judiciário, podem se aprofundar e chegarmos a uma situação que Mário Vargas Llosa – insuspeito de ser de esquerda – classificou de “ditadura perfeita”. Foi como ele designou o regime do PRI, partido-estado mexicano, que governou o país durante mais de sete décadas.
Por que “ditadura perfeita”? Trata-se de um regime – segundo o epíteto de Vargas Llosa – que, apoiado numa institucionalidade autoritária ou num regime constitucional manipulável, não rasga seus códigos e leis, mas estabelece uma tal supremacia do grupo político hegemônico, que ele pode fazer o que quiser, sem declarar-se fiel a um ditador e sem o seu poder originar-se de um golpe militar em sentido clássico.
O ex-presidente da República Lula da Silva não ia sair do país, atendeu todas as requisições para depor, tem residência fixa e jamais regateou para prestar quaisquer esclarecimentos a qualquer autoridade legalmente investida, a respeito da sua vida financeira e do seu passado como gestor público. Todos os cidadãos podem ser investigados pelos órgãos do Estado, dentro da legalidade e por motivos fundados, mas os vazamentos seletivos, os massacres morais pela mídia, a midiatização do processo penal, certamente não fazem parte desta legalidade.
A sua condução coercitiva, porém, foi um espetáculo político nitidamente articulado com o movimento de golpismo político, que está em curso contra presidenta Dilma, no momento em que é noticiado um PIB negativo, uma eventual delação do Senador Delcídio e – muito importante! – a “Zelotes” começa a apresentar alguns resultados que fugiram à previsibilidade dos que perderam as eleições presidenciais.
Mais do que bloquear uma nova candidatura de Lula, este movimento de determinados setores autoritários da burocracia estatal – articulados com a maioria da mídia tradicional – visa “ressecar” a esfera da política, apropriar-se desta esfera “impura”, que está contaminada por partidos que se corromperam e por políticos que só pensam em si mesmos.
Esta é nitidamente a orientação que está no despacho do juiz Moro – nitidamente de “exceção”- que converteu a prisão temporária de João Santana e de sua esposa, em prisão preventiva. Lá ele diz que, como a corrupção é sistêmica e profunda “impõe-se a prisão preventiva para debelá-la, sob pena do aguçamento progressivo do quadro criminoso…” Nada de individuação de responsabilidades de maneira consistente, para manter a prisão de pessoas que vieram do exterior para depor. Apenas o combate em abstrato à corrupção.
Isso não é novo, ocorreu com Getúlio, com a ascensão de Mussolini, com Fujimori no Peru, com Hitler, com a genocida ditadura argentina, em outras condições históricas, por outros meios, mas com o mesmo sentido final: mostrar que a democracia não presta e que ela não consegue reformar a si mesma, pelos processos políticos previstos na Constituição.
Longe de mim acusar – e o digo sinceramente – que estamos perante uma conspiração de juízes e promotores fascistas, tramando contra a República e a Democracia. Isso seria simplismo e muito fácil de combater, porque bastaria mostrar provas da existência de um grupo conspirativo e ataca-lo por meios jurídicos e políticos. A situação é muito mais complexa, como movimento regressivo dos padrões democráticos da Constituição de 88.
Trata-se, na verdade, de uma mudança profunda no funcionamento do Estado, pela qual as suas funções públicas passam a ser diminuídas, momento em que ele, Estado, precisa dar mais importância para responder aos credores da sua dívida pública (com o capital financeiro global), em detrimento da sua dívida originária com os sujeitos dos direitos sociais inscritos na Constituição (povo constituinte que lhe deu sentido).
As duas dívidas não podem respondidas ao mesmo tempo e o que predomina, a partir desta ambiguidade, é a força normativa do capital financeiro se sobrepondo à força normativa da Constituição, processo que só se consolida com a extinção da esfera democrática da política, cujos alvos centrais são sempre os dirigentes mais prestigiados junto às classes populares.
Se fosse, mesmo, uma luta sincera contra a corrupção (o que move os novos tutores da República), não deveriam eles ter o mesmo tratamento e proporcionar a mesma exposição na imprensa, sem qualquer inculpação prévia, de Alckmin, Richa, Fernando Henrique e Serra? Isso não ocorre porque a mídia – que socorre e ampara todos os dias os novos tutores da República – romperia com eles e, sem o apoio da mídia, estas arbitrariedades não teriam o mínimo apoio popular. Leiam o artigo que Moro escreveu sobre as Operações Mãos Limpas, na Itália. Está tudo lá.
Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.