“É golpe porque é contrário à Constituição.” É assim que Dalmo de Abreu Dallari, decano jurista e professor emérito da Faculdade de Direito da USP, se refere ao pedido de impeachment atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados. “Impeachment sem fundamento jurídico é um golpe porque é uma violência”, acrescenta.
Prestes a completar 84 anos, o professor explica a decisão do Supremo Tribunal Federal de anular a votação secreta na Câmara e reiterar o poder do Senado no rito do impeachment e evoca a Constituição de 1988 a cada argumento que dá contrário ao pedido assinado por Hélio Bicudo e Miguel Reale Jr., dois colegas que rascunharam com ele o pedido de impedimento do expresidente Fernando Collor de Mello em 1992. “Eu não sou a favor de Dilma. Sou a favor da Constituição.”
Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.
Folha – O sr. foi um dos juristas que redigiu o pedido de impeachment
do ex-presidente Fernando Collor de Mello. O uso deste instrumento era legítimo com Collor, mas não o é com Dilma?
Dalmo Dallari – A questão da legitimidade não é pelo impeachment em si mesmo, mas pela sua fundamentação. Naquela ocasião, em relação ao Collor, foram feitas acusações muito precisas. Foram indicados elementos muito concretos que configuravam crime de responsabilidade. E isso não aconteceu até agora em relação à presidente Dilma Rousseff. Por isso essa acusação de agora é ilegítima. Ela não tem fundamentação jurídica.
Que tipo de fundamentação existia à época e não existe hoje?
Contra Collor, houve acusações com muita comprovação de desvio de recursos públicos em benefício pessoal ou de amigos. Foram indicados atos praticados pelo presidente e determinações dele que configuravam crime de responsabilidade, ou seja, eram flagrantemente contrários à lei. E este é o ponto fundamental, que dava fundamentação jurídica e, portanto, legitimidade ao pedido.
No caso presente, o que há são, primeiro, afirmações que mais do que evidentemente não servem de fundamento. Por exemplo, dizer que Dilma Rousseff, quando presidente da Petrobras, se omitiu. Primeiro que a Constituição exige “atos” presidenciais. Ora, omissão é a ausência de atos. Segundo, a Constituição exige para impeachment que esses atos tenham sido praticados agora, no mandato como presidente.
E não há a mínima acusação de que ela tenha desviado recursos financeiros em proveito próprio ou de alguém ou para aplicação ilegal, contrária à lei orçamentária.
As pedaladas fiscais não foram atos presidenciais?
Aquilo que se convencionou chamar de pedaladas, que estão comprovadas, ditas e afirmadas, o próprio [ex-presidente] Fernando Henrique Cardoso praticou muito também. A pedalada é um artifício contábil e não um desvio de recursos financeiros para objetivo ilegal. É um retardamento na transposição de recursos de um fundo para outro fundo público. Mas isso não configura nenhum dos crimes de responsabilidade previstos na lei 1.079 de 1950, que trata do impeachment.
Falta este enquadramento legal que poderia dar legitimidade a um processo. Por isso não há o mínimo fundamento jurídico para o processo de impeachment.
Outros juristas que estiveram ao seu lado no impeachment de Collor agora defendem o impeachment de Dilma…
Existem várias razões para isso. Uma delas é um ressentimento pessoal. E aí eu vou mencionar o meu caríssimo amigo, que eu respeito e admiro muito, Hélio Bicudo. Ele tem toda uma história magnífica de defesa do direito. Mas ele se filiou ao PT e teve a pretensão de ser embaixador brasileiro na Suíça, possivelmente porque é em Genebra que está o centro de direitos humanos da ONU. Essa história é de amplo conhecimento: ele ficou absolutamente indignado porque havia manifestado indiretamente essa ideia, mas não foi recebido pelo presidente Lula para externar essa vontade. Isso provocou um forte ressentimento.
Não sei por qual motivo o presidente Lula não o recebeu. Hélio Bicudo é uma figura respeitável. E isso foi decisivo: ele se tornou um anti-petista absolutamente obsessivo.
Agora, o caso de Miguel Reale Jr. é mais evidente: ele é filiado ao PSDB, de modo que a posição dele é, antes de tudo, política e não jurídica.
Então, isso explica por que pessoas da área jurídica são favoráveis ao impeachment mesmo não havendo consistência jurídica para isso.
O sr. redigiu pedido de impeachment contra FHC em 2001 por negociar emendas para bloquear uma CPI. O mesmo argumento não poderia ser usado contra Dilma?
Quem acha isso demonstra absoluta falta de conhecimento jurídico e não tem nenhuma ideia de que o direito se aplica aos fatos segundo as circunstâncias. Então a mesma regra jurídica poderá ser invocada mas aplicada ou não dependendo do conjunto de fatos e de circunstâncias.
Por isso, a própria jurisprudência do STF muda, às vezes oscila. Porque em relação um determinado preceito jurídico, mas considerando o conjunto de circunstâncias, o ministro muda a posição. Por isso a jurisprudência é variável. Isso não significa que os ministros tenham abandonado os critérios jurídicos absolutamente.
Eu não lembro agora de pormenores da situação contra FHC, mas possivelmente havia comprovação de fatos que caracterizavam uma agressão ao direito. Acentuo muito isso: não tenho vinculação com nenhum dos partidos existentes no Brasil.
Se se acusar amanhã a presidente Dilma dando os fundamentos válidos e consistentes para sustentar que ela praticou crimes de responsabilidade, eu serei a favor do impeachment e da punição.
Eu não sou a favor da presidente Dilma, eu sou a favor da Constituição. O jurista René Dotti diz que há precedente no STF para o pedido de impeachment com base em ações do mandato anterior.
Isso eu acho que é contra o artigo 86 da Constituição, que diz expressamente que o presidente só pode ser responsabilizado por atos praticados no exercício do presente mandato.
Mas e o que ela fez como presidente no mandato anterior?
Também não é fundamento jurídico para impeachment. Tem de ser no atual mandato.
Só que a constituição é anterior à reeleição.
Mas a Constituição fala em atos praticados na vigência do seu mandato. Isso exclui o mandato anterior. Cada mandato tem absoluta autonomia e, por isso, um tempo certo de duração. Não importa que uma mesma pessoa receba dois mandatos. Um não é uma prorrogação do anterior. É um novo mandato eleito.
Isso não parece mais um exercício de retórica?
Não. Senão, nós poderíamos ir buscar lá atrás atos do ex-presidente Fernando Henrique para declarar, agora, que tudo o que ele fez a partir de então é nulo porque já teria praticado um crime.
Quando a Constituição diz “o presidente, na vigência do mandato”, não há dúvida: é o presidente atual na vigência do mandato atual que ele está exercendo.
A falta de governabilidade é argumento para impeachment?
Esse é um argumento político que varia quando alguém é a favor do governo ou contra ele. Não é um argumento jurídico; portanto, é ilegítimo.
Como o sr. avalia o julgamento do STF sobre o rito do impeachment?
Fiquei feliz pela maneira como o julgamento foi conduzido e com suas conclusões. Ficou evidente que a maioria dos ministros está consciente de seu papel de guarda da Constituição.
Em termos de conteúdo, foi importante a abordagem feita no tocante ao artifício usado pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha, para a votação secreta. Ela não é prevista na lei, mas foi utilizada como forma de esconder os seus aliados ou os seus dependentes. Seria uma forma de ocultar do povo qual foi a condição de cada deputado, e isso daria uma cobertura para negociatas, grande especialidade do presidente da Câmara. A decisão do Supremo repeliu isso.
Outro dado que, a meu ver, é de fundamental importância e que estava sendo esquecido de propósito ou ignorado –porque, infelizmente, muitos brasileiros que atuam no direito, inclusive alguns professores, não conhecem a Constituição– é que há uma diferença essencial entre o papel da Câmara de Deputados e o papel do Senado num processo de impeachment. A Constituição é muito clara quando diz que compete à Câmara autorizar o processo pura e simplesmente. Autorizar não é determinar ou ordenar. E isso estava sendo mal interpretado. Alguns podem não ter lido direito a Constituição, mas outros estavam maliciosamente fazendo a aplicação dos preceitos porque lhes era conveniente.
Se essa autorização não é uma ordem ou uma determinação, existe um segundo momento no Senado. Diz a Constituição que compete exclusivamente ao Senado o julgamento do processo de impeachment. Então, nessa competência para julgar está incluída a competência desde logo que não existe qualquer fundamento e que a proposta deve ser arquivada.
Sem impeachment, não corremos o risco de passar três anos em convulsão social e econômica?
Estou convencido de que a onda do impeachment está chegando ao final. A partir de março do ano que vem estará tudo voltando ao normal. Temos uma ordem constitucional democrática muito consistente. A Constituição é essencialmente democrática e foi feita pelo povo.
Como é que o sr. avalia a postura do vice neste momento de trâmite do impeachment?
Eu acho que, infelizmente, e ele também é meu velho amigo, há uma vinculação política. E neste caso, mais grave ainda, porque ele seria o sucessor de Dilma, então, ele tem interesse pessoal no afastamento da presidente. Ele tem deixado muito evidente este interesse.
E há um aspecto quase terrorista que já foi levantado. A questão de que Michel Temer, por atos cometidos quando substituiu a Dilma, também ficaria sujeito a afastamento. Aí o que é que resulta: que a Presidência do Brasil será entregue a Eduardo Cunha (risos). Deveriam pensar melhor neste absurdo.
O que eu tenho verificado é que tanto PMDB quanto PSDB já estão em campanha eleitoral. Muito do que eles dizem contra a Dilma vem daí: de sua pretensão de surgir como salvador da pátria.
Nenhum deles propôs um plano de governo detalhado. E é isso o que deveriam fazer agora. Quem sabe eu mesmo não me convenceria?
O pedido do procurador-geral, Rodrigo Janot, de afastamento do presidente da Câmara tem fundamento jurídico?
Verifiquei e o Janot agiu rigorosamente dentro da lei. É papel do Ministério Público e ele fundamentou seu pedido de maneira que existe sim base jurídica para atendimento da proposta. O Ministério Público ganhou uma nova força com a Constituição de 1988, e ele é, de certo modo, um advogado do povo. Sempre que esteja ou ameaçado ou agredido o interesse público, é ele que deve agir porque tem essa atribuição.
Está bem evidente por todos os elementos a que já foram dados publicidade que Eduardo Cunha tem agido contrariamente à lei. Mas escancaradamente contra a lei. Então, não há dúvida de que existe muito fundamento para essa iniciativa.
Fonte: Folha de São Paulo