Lutar por uma sociedade de iguais foi, assim, sua forma de amar o próximo e o objeto de toda a vida
por: ROBERTO AMARAL
Político, filólogo, professor, ecdota, editor, etimólogo, dicionarista, enciclopedista, diplomata, acadêmico, bibliógrafo, crítico literário e teórico da literatura, tradutor, jornalista de bom combate (das trincheiras do “Correio da Manhã” nos primeiros idos da ditadura), cozinheiro festejado e excelente garfo, experto em vinhos e cerveja, sobre o que também escreveu, havendo escrito sobre quase tudo.
Eis alguns dos atributos — não mencionei sua coragem cívica, nem sua lealdade aos amigos nem sua inteireza de caráter — desse brasileiro que no dia 15 deste outubro teria completado 100 anos. O centenário que festejo é de Antônio Houaiss, o humanista de sua geração. Emprego o termo humanista não para referir-me, tão só, à sua formação clássica, mas, principalmente, para destacar sua opção política, filosófica e ética pelo homem, estrada que o levou ao socialismo, como teoria e projeto. Lutar por uma sociedade de iguais foi, assim, sua forma de amar o próximo, e o objeto de toda a vida. Fez-se a serviço de seu país e de seu povo e, intelectual engajado, no melhor significado sartriano, ele o era em todas as atividades que exerceu, fundindo obra e vida, opção filosófica e ação política, formação cultural e práxis.
Pois esse intelectual, raro, esse cérebro privilegiado, esse trabalhador incansável, jamais se iludiu quanto aos limites da reflexão pela reflexão, da pesquisa pela pesquisa, da teoria pela teoria. Ao contrário, cerebrino, priorizou sempre a ação concreta, a intervenção no processo social, nele tomando o partido dos oprimidos.
Não sem razão, Houaiss foi perseguido politicamente e teve truncada sua carreira diplomática, na qual se destacaria ao pôr o brilho de sua inteligência a serviço de missões de paz e na descolonização africana. Gostosamente, como dizia, acentuando o advérbio tão ao seu agrado sensualista, votou na ONU, em nome do Brasil, contra a anacrônica presença portuguesa no continente negro, o que, como jamais duvidou, lhe traria problemas que não seriam poucos. Logo nos primeiros momentos da ditadura inaugurada em 1º de abril de 1964, teria seus direitos políticos cassados e decretada a aposentadoria precoce que o afastava da diplomacia e do serviço público. Jamais, porém, sentiu-se injustiçado. Recebeu a punição como homenagem à sua biografia e estímulo ao seu papel político. Teve sempre, presidindo suas opções, a consciência da responsabilidade de intelectual em um mundo em guerra, em uma sociedade em conflito, na qual a cultura é privilégio, e a riqueza é acinte.
Réu em processo administrativo instaurado no âmbito do Itamaraty, fez de sua defesa um libelo contra o autoritarismo.
O encontro profissional entre dois editores transformou-se em sólida amizade e colaboração intelectual que mais se firmava na medida em que cresciam as afinidades políticas: a companhia na boa mesa e nas discussões sem hora para terminar, nos almoços semanais que partilhávamos com Evandro Lins e Silva, e nos serões de estudo e trabalho. Os fados fizeram com que trabalhássemos juntos em muitos momentos. Escrevemos e assinamos juntos artigos de imprensa e alguns livros. Textos comprometidos, textos engajados.
A militância de Antônio Houaiss começa cedo. Aos 15 anos, aluno da Escola Comercial Amaro Cavalcanti, ingressa na Federação Vermelha dos Estudantes; durante o Estado Novo, participa da luta clandestina contra a ditadura varguista. Nos anos de chumbo do mandarinato militar, estava com Oscar Niemeyer (mestre de vida) na primeira fila do Centro Brasileiro Democrático (Cebrade), ao lado de Barbosa Lima Sobrinho na ABI, ao lado de Ênio da Silveira na editora e na “Revista da Civilização Brasileira”.
O militante contra a ditadura não teve dúvida em colaborar com a democracia que, em 1984, nascia frágil e ainda condicionada pelos militares, e ajuda o ministro Fernando Lira na erradicação da censura. Antes da Constituinte, pela qual lutou, entende que o Brasil tinha o direito a um partido socialista. Com Evaristo de Morais Filho, Jamil Haddad e Evandro Lins e Silva, além deste escriba, foi um dos responsáveis pela refundação do PSB, do qual seria seu primeiro presidente. Sem arredar pé de seu papel diretor do grande e melhor dicionário da língua portuguesa, percorreu o país debatendo, discutindo, terçando armas, defendendo seus pontos de vista, organizando o partido. Hoje estaria triste contemplando o que fizeram dele.
Os últimos anos de vida seriam de extraordinária produtividade. Com José Aparecido, trabalha pela Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa. No Ministério da Cultura, no governo Itamar, fundiria teoria e prática. Moderno, faz da defesa do cinema nacional a defesa estratégica da cultura e de nossa imagem, de nossa identidade. É o principal artífice e animador do Acordo Ortográfico da lusofonia.
A práxis jamais impediu a elaboração teórica ou a atividade cultural stricto senso. Foi sob o fogo da ditadura, diante da qual jamais baixou a guarda, que levou a cabo, a pedido de Ênio da Silveira, a primeira e incomparavelmente criativa tradução de “Ulisses”, de James Joyce, para a língua portuguesa, coordenou as enciclopédias Barsa e Mirador e elaborou o Dicionário Koogan-Houaiss. Foi na atmosfera rarefeita dos anos de chumbo que alcançou um de seus momentos mais produtivos. Sua obra está distribuída não só em seus livros, mas em um sem-número de textos dispersos em títulos de terceiros, coletâneas, antologias, revistas científicas e culturais e obras de referência. Espalhada em inumeráveis fontes pelos mais diversos meios, apresentações, introduções, prefácios, prólogos, orelhas de livros, é um mundo em processo de identificação.
Não há como fugir ao lugar-comum: neste vazio de personagens que marca a triste história de nossos dias, a ausência de um intelectual como Antônio Houaiss precisa ser lamentada e seu papel político precisa ser lembrado para que as novas gerações possam ter exemplos nos quais se espelhar.
Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia
Fonte: O Globo