Difícil saber se Carlos Heitor Cony simplesmente ignora a História da qual foi contemporâneo, ou distorce os fatos, e mente para seus leitores de forma consciente e deliberada.
A crise política faz alguns colunistas esquecerem a honestidade intelectual
Sua crônica “Obscenidade” (FSP, 6/10/15) é verdadeira retomada do samba do crioulo doido, do saudoso Stanislaw Ponte Preta, porém sem a graça e o pitoresco, a verve poética e a sensibilidade de cronista do criador de Primo Altamirando.
Procurando gancho para atacar a presidente Dilma Rousseff, sua ideia fixa dos últimos tempos (já teve outras melhores, quando jovem), Cony, sem nenhum constrangimento aparente, transpõe para 1964 fatos ocorridos em 1954 e 1955. Reescreve a seu talante a História do Brasil.
O passado, dizem, é imprevisível…
O escriba diz, por exemplo, que, para evitar comprometer-se com a deposição de Getúlio Vargas, de quem era vice-presidente, Café Filho “se internara num hospital e assim ficara livre de não participar daqueles dias tumultuados que levariam ao suicídio do presidente em exercício”. Tudo errado.
Café Filho não estava internado em agosto de 1954 (mas muito ativo nas conspirações contra Vargas], e sim em novembro de 1955, quando da tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitscheck, episódio que o PSDB e seus satélites se esforçam por reproduzir desde o fim das eleições do ano passado.
Mas o cronista não se cansa de malbaratar os fatos e volta a fazer da História um delírio de samba- enredo de Escola de Samba. Escreve: “Tão logo correu a notícia da morte de Vargas, deram alta hospitalar ao vice para que ele assumisse a Presidência [Café Filho não estava hospitalizado em 1954!], mas os militares que haviam dado o golpe que instauraria a ditadura [o que só ocorreria, lembremos, em 1964], consideravam Café Filho comprometido com a situação deposta”.
Puro devaneio, elucubração, viagem, fantasia.
A imaginação do imortal não tem limites. Animado com o próprio engenho, prossegue o nefelibata: “Cercaram com tanques e tropas o prédio [onde morava o vice, em Copacabana] para impedir que Café saísse de casa e fosse ao Catete para tomar posse na Presidência da República. No dia seguinte, o poeta [Manuel Bandeira] escreveu um artigo no Jornal do Brasil considerando obscena aquela manifestação de força contra um homem desarmado que, naquela hora, já era presidente do Brasil”. Tudo falso. O artigo de Manuel Bandeira é de 1955 (e não de 1964) e trata da já mencionada tentativa de golpe para impedir a posse de JK, recém eleito presidente da República.
O título da crônica de Cony é ‘Obscenidade’, e como tal ele qualifica, tomando o adjetivo emprestado ao poeta pernambucano, o ato oficial da posse dos novos ministros nomeados pela presidente Dilma. Toda a história inventada é apenas isso, a procura de um gancho para desqualificar a posse do novo ministério.
O compromisso com a honestidade intelectual exige que recuperemos a História.
Primeiro de tudo: os fatos, distorcidos na crônica, remontam a 1954 (e não a 1964, ano da ‘Redentora’, quando João Goulart é deposto e os militares tomam o poder) e ao suicídio do presidente Getúlio Vargas na madrugada de 24 de agosto. Na contramão do que escreve o cronista da Folha, Café Filho, vice-presidente, eleito com Getúlio, não se internou durante a crise de agosto de 1954, pelo contrário, são e sadio participou ativamente das tratativas golpistas.
Ficou célebre, por exemplo, seu discurso no Senado (então o vice-presidente presidia o Senado Federal) sugerindo a renúncia do titular (a propósito, Cony, na má companhia de FHC vira e mexe pede a renúncia de Dilma). Anunciado o suicídio de Vargas, Café Filho corre ao Palácio do Catete e ainda de manhã toma posse na presidência e instaura o governo da UDN, com o brigadeiro Eduardo Gomes ministro da Aeronáutica e o general Juarez Távora, seu Chefe da Casa Militar.
Eleito Juscelino Kubitschek (tendo Jango como vice) no pleito de outubro de 1955, os militares, numa conspiração da qual o presidente da República se fizera porta-voz, tentam impedir sua posse.
Relembro: fracassada a tentativa de impedir a candidatura de JK, fracassada a tentativa de impedir sua eleição, a UDN e sua fração militar (Távora, Eduardo Gomes, Pena Boto, Bizarria Mamede, Canrobert Pereira da Costa e outros menores) e o sistema de comunicação comprometido (Globo e Estadão à frente de todos) se voltam para o golpe militar. O objetivo era impedir a posse de JK.
Para facilitar a operação, o presidente Café Filho (relembremos, vice-eleito com Vargas que assumira a presidência em agosto de 1954 com o suicídio do presidente) se licencia para que em seu lugar assumisse a presidência o presidente da Câmara Federal, o deputado Carlos Luz — que, cumprindo sua parte, demite o ministro da Guerra, general Lott, da ala legalista, o qual, com o apoio do comandante do I Exército, sediado no Rio, reage ao golpe.
Fracassada a tramoia, Café Filho, que se internara no Hospital dos Servidores alegando problemas cardíacos, se declara sarado e anuncia o propósito de reassumir o posto. É impedido, porém, pelo Congresso Nacional, que, quiçá animado em seu civismo pelo calor das tropas, declara incapacitados para o exercício da presidência sucessivamente ele Café Filho e o presidente da Câmara, o já mencionado Carlos Luz.
Em casa, Café Filho quedou sob uma espécie de ‘custódia’ das tropas de Lott. O episódio ficou conhecido ora como ‘novembrada’, ora como ‘contragolpe de Lott’. Carlos Luz e uma meia dúzia de áulicos, entre os quais Carlos, embarcam em navio da Marinha comandado pelo trêfego almirante Pena Boto, dá uma volta pela baía de Guanabara e terminam se entregando às autoridades, que mandam a súcia passear. Nenhum dos insurretos foi preso, e todos os conspiradores seriam depois beneficiados pela Anistia decretada por JK.
Com a vacância da presidência, decorrente da inabilitação de Café Filho e Carlos Luz, assume, seguindo a ordem constitucional, o vice-presidente do Senado, senador Nereu Ramos, que conclui o mandato iniciado com Vargas, e em janeiro de 1956 passa a faixa ao presidente eleito, Juscelino Kubitscheck, que iria enfrentar duas intentonas militares e uma série de pedidos de impeachment, até o final de seu governo.
Onde entra o artigo de Manuel Bandeira, que é de 1955 e não de 1964? Café Filho, relembro, deixara o hospital e voltara ao seu apartamento na Av. N. S. de Copacabana, onde ficou virtualmente retido pelos militares, com o aparato de tropas e carros tão ao gosto deles. É a este fato que se referia Manuel Bandeira, em 1955.
No último domingo, despedindo-se antes das férias, Clóvis Rossi (‘Palhaçada’ 5/10/2015), outro colunista ilustre da Folha, escreveu – irônico, claro – que seu jornal deveria demitir todos os seus articulistas políticos, pois o único que estaria à altura dos acontecimentos, por assim dizer, é o José Simão. Os demais, segundo Rossi, são competentes, porém, sérios. E o momento, acrescento por minha conta e risco, é de esculhambação – especialidade do Simão.
Basta dizer que ninguém menos que o cidadão Eduardo Cunha, acusado de crimes diversos pelos Ministérios Públicos do Brasil e da Suíça, é quem está, até o momento em que escrevo estas linhas, incumbido de avaliar o mérito de pedidos de abertura de processo contra a Presidente da República, cidadã sabidamente honrada.
O ‘ministro’ Augusto Nardes, sob investigação (acusado de haver recebido R$ 1,8 milhão, como pagamento pela anulação fraudulenta de dívida fiscal da RBS, a poderosa sócia e repetidora da Rede Globo no sul do país), foi o relator das contas de Dilma no TCU. Prato cheio para Stanislaw e seu Febeapá. Foi-se o festival de besteiras da era dos militares, agora o país é assolado pela pornografia política.
Para o Febeapá, reconheçamos, também contribuem os feiticeiros do Planalto, com seus erros de cabo-de-esquadra, pois, de outra forma não se compreende uma reforma ministerial montada para garantir uma maioria no Congresso que é negada no primeiro teste!
Tal qual é a extemporânea valorização do TCU (que não é Corte coisa nenhuma, mas um simples conselho de contas, que não passa, constitucionalmente, de órgão auxiliar do Legislativo e, portanto nada decreta) e do relator Nardes (que é um simples conselheiro e não um magistrado), sabendo que a decisão da autarquia, já conhecida, era contra o governo? Ou não sabiam? Se não sabiam, pior ainda…
De quem foi a ideia de pedir a substituição do relator e de ameaçar com a ida ao STF, ida que não haverá, e que apenas serviu para levantar a bola da oposição quando essa caminhava para o esvaziamento? O governo, mais uma vez funcionando como regra três da oposição, conseguiu, com a competência que felizmente falta a esta, aumentar o desgaste inevitável. Esperemos, porém e ainda, que as negociações das quais resultaram o novo ministério valham o preço pago.
Roberto Amaral