Um movimento de caráter popular que congregue as forças progressistas é necessário para combater a ascensão da direita

 

Lula durante evento em 1989: as forças progressistas precisam de união

Lula durante evento em 1989: as forças progressistas precisam de união

Ao final do memorável pleito de 1989, propusemos, Jamil Haddad e eu, ao PT e ao seu líder Luiz Inácio Lula da Silva, a institucionalização, ampliada ou não, da Frente Brasil Popular, responsável pela mais importante campanha eleitoral realizada até aqui, desde a redemocratização de 1984. Foi aquele, é preciso recordar, um pleito rico do ponto de vista político (nada a ver com os debates das últimas eleições presidenciais), ensejando uma discussão ideológica que jamais se repetiria, e que, talvez, até pela sua riqueza, tenha sido condenado ao esquecimento.

A Frente, integrada por um pequeno, mas vibrante, PT (vibrante tanto quanto sectário, em um purismo que não conseguiu preservar), congregava o saudoso PSB e o PCdoB, numa disputa na qual enfrentou gigantes como PMDB, PFL e PDT de então, liderado pela figura carismática, histórica e forte de Leonel Brizola. Pois essa Frente, sem abdicar de princípios, sem marqueteiros, levara o líder metalúrgico – dito e redito sem viabilidade eleitoral – a disputar o segundo turno das eleições com o candidato das forças conservadoras, do grande capital e dos grandes meios de comunicação de massa, à frente dos quais estava, como sempre, ativo, o indefectível Sistema Globo de Televisão.

Naquele também memorável segundo turno perdeu a Frente Brasil Popular as eleições, como se sabe, nas circunstâncias conhecidas. Mas, antes, aglutinara em torno de si todas as forças populares do País, todos os partidos progressistas de então (inclusive os hesitantes PSDB e PCB, este já sob o controle dos liquidacionistas), intelectuais, artistas, a universidade, trabalhadores, e as grandes massas urbanas num processo crescente de politização, pois ainda ecoavam a luta contra a ditadura e a campanha pelas Diretas Já, certamente a mais significativa mobilização popular conhecida pela República, lembrando a hoje também esquecida campanha “O petróleo é nosso”.

Víamos, na ideia da Frente, a possibilidade de manter sob nossa influência as diversas correntes políticas que haviam acorrido à campanha do segundo turno, mas que não eram eleitoras nem do PT nem dos demais partidos – correntes, aliás, que não se sentiam identificadas ou atraídas pelo quadro partidário brasileiro, em reconstrução naqueles anos. Lembremos, era a primeira eleição direta para presidente, desde 1960! Ancilar a esse propósito havia, assim sentíamos, a necessidade de dar organicidade e proporcionar atividade permanente aos nossos partidos, em interação com a sociedade, ou seja, compreendendo a sociedade em sua complexidade, rasgando os limites da militância. Sem sermos pitonisas, antevíamos os embates a que seríamos chamados a travar com o governo Collor e sua base conservadora. Mas, acima de tudo, nós que havíamos vivido o fim do governo Jango e a insurgência da ditadura, víamos na Frente, por limitada que fosse, a possibilidade de manter as esquerdas brasileiras (naquela altura já pensávamos em “forças progressistas”) unidas também “fora da cadeia”. Por havermos vivido a ditadura, conhecíamos muito bem a importâncias da institucionalidade democrática.

Mas o PT, inflado ou não pela “vitória política” recente, e que da história política do País só conhecia a sua própria – pequena e recente –, perseguia, já ali, um projeto-solo. A Frente certamente sugeria a seus líderes a ameaçadora possibilidade de crescimento das demais forças de esquerda e progressistas, quando o que interessava àquele PT não era necessariamente o crescimento coletivo das esquerdas como movimento político, mas o crescimento do PT como a grande força da esquerda (assim no singular) brasileira. Vem de sua fundação tanto o exclusivismo quanto o projeto hegemônico. Uma espécie de “destino manifesto”.

Seja por isso, seja por aquilo, o fato objetivo é que a institucionalização da Frente foi descartada, e nela não mais se falou, embora PSB e PCdoB permanecessem aliados ao PT e apoiando a candidatura Lula em eleições seguintes.

A ficha começa a cair após a vitória de 2002, confrontando o PT com o “fato novo” que era a governança de centro-esquerda em país dominado por uma estrutura político-jurídico-econômico-comunicacional reacionária, dependente de um Congresso no qual as forças que haviam elegido o presidente da República eram acachapantemente minoritárias. (Na Câmara Federal, com seus 573 membros, os partidos que haviam apoiado o presidente Lula somavam míseros 73 deputados, se tanto.)

A realidade, porém, imporia, como de necessidade, em 2003, o que o idealismo havia rejeitado em 1989. Por óbvio, a vida caminha, não se tratava mais de ressuscitar a velha “Frente Brasil Popular”, mas de arregimentar um dispositivo novo capaz de assegurar o apoio político popular ao governo mudancista, necessidade que se tornaria imperiosa a partir de 2005. Os dados então exigiam uma Frente capaz de garantir a sustentabilidade ao governo para além de sua base parlamentar, uma Frente dotada de peso eleitoral suficiente para assegurar a continuidade do projeto de mudanças que Lula representava.

Naquela oportunidade, como ministro da Ciência e Tecnologia, tive inúmeras oportunidades de discutir com o presidente Lula o projeto de uma Frente (minha quase obsessão), quando, às razões de origem, se agregavam outras, como a identificação já naquela altura da crise dos partidos, inclusive dos nossos.

O presidente, que se encantara com a ideia da unificação dos partidos de esquerda, começava a considerar, com moderado entusiasmo, a ideia de uma frente, agora tendo como fonte inspiradora a Frente Ampla uruguaia, que vinha (e assim se mantém) somando seguidos sucessos. A História já nos disse que esse caminho foi outra vez posto de lado.

De novo a lição da realidade: a crise de hoje exige uma saída que a supere. Penso como inviável uma frente de partidos, por uma razão simplíssima, a ausência de matéria prima, e, nessa falência, destaco, porque relevante para minhas considerações, o agravamento da crise dos partidos progressistas (note o leitor que mais não falo em partidos de esquerda). Essa crise (cuido exclusivamente dos partidos progressistas) é de identidade, mas é também, como consequência, de caráter orgânico, alimentadas, ambas, pela ausência/carência de reflexão, pela incapacidade coletiva de interpretar a realidade e, por consequência, pela inevitável incapacidade de agir, que hoje descamba para a anomia, que igualmente pervade o movimento social de inclinação progressista, com a possivelmente única exceção do MST.

De todas, a mais grave é a crise do Partido dos Trabalhadores – por irônico decretada pela conquista e o exercício do poder – de quem se espera uma profunda autocrítica animadora e sua virtual refundação. Essa refundação, sua necessidade, é preciso dizer, não diz respeito tão somente ao PT, pois se seus acertos contribuíram para o avanço do pensamento progressista em nosso País, seus erros, e principalmente seus erros recentes, atingem em cheio todas as forças progressistas do Brasil – inclusive as que não estão com ele alinhadas, nem alinhadas estão ou estiveram com seus governos.

Mais do que nunca, pois, a frente, uma frente, continua necessária, não a frente de partidos de ontem, mas uma frente ampla de caráter nacional popular que congregue as forças progressistas (insisto, para além das esquerdas), partidárias ou não, organizadas de preferência, mas não necessariamente, como sindicatos, as diversas instituições e entidades da sociedade civil, intelectuais de modo geral, a comunidade acadêmica, o pensamento progressista em sentido amplo, compreendendo liberais de esquerda, a saber, todos os que estiverem convencidos de que só somando, compartilhando e alargando nossas forças para além de nosso campo, poderemos fazer frente à ascensão do pensamento e da ação da direita, que se organiza para a tomada do poder para nele promover, como já anunciada, a revisão dos avanços sociais, econômicos e políticos logrados pela sociedade brasileira nas últimas décadas.

O desafio exige compromissos com a soberania nacional, a retomada do desenvolvimento autônomo e a preservação dos direitos dos trabalhadores. Está à vista que tal frente não pode se limitar a pensar o imediato, o hoje apenas, não pode se contaminar pela pequena política, e muito menos isolar-se e inevitavelmente imolar-se num projeto meramente eleitoral, seja com vistas a 2016, seja mesmo com vistas a 2018, pois, só pensando a longo prazo (como pensou a matriz uruguaia), seu projeto nos levará à conquista ideológica da sociedade, a única que pode assegurar perdurância. Não é certo que, unidos, ganharemos, mas sem dúvida, separados, perseguindo projetos isolados, perderemos todos, como perdemos sempre que priorizamos a luta interna em prejuízo do combate na sociedade.

Primeiro de abril – Quando este artigo estiver sendo lido, estaremos a lembrar, para jamais esquecer, o golpe de Estado de 1964 que depôs o presidente João Goulart para impor ao país 20 anos de uma ditadura civil-militar, com seu legado de arbítrio, cerceamento das liberdades (inclusive da liberdade de imprensa), eliminação dos direitos civis e das franquias democráticas, supressão da ordem constitucional, demissões, prisões, torturas e assassinatos, corrupção e impunidade que perdura até hoje.

Roberto Amaral