“Não se pode esquecer que a história é cruel com aqueles que pensam que ela é eterna, porque na verdade ela não é eterna, ela muda suas faces, muda suas exigências e pode se converter num abismo, e pode afogar todos aqueles que não perceberem que é o momento de mudar o rumo”, Florestan Fernandes (in Tempo social, outubro de 1995)

Comecemos pelos desafios que aguardam o segundo mandato de Dilma Rousseff, revelando um segredo de Polichinelo: será difícil seu governo, e as razões explicativas ficam mais evidentes se cotejarmos o quadro de hoje com aquele da posse e início do governo Lula, que chegava ao Planalto bafejado por uma espetacular vitória política cimentada em acachapante maioria eleitoral, ainda que em segundo turno. Uma e outra fontes de legitimação abriram caminho para uma transição civilizada e criaram junto ao povo um clima de euforia, que era também autêntico voto de confiança no novo governante. Finalmente, haveria real mudança de (visão) de governo, ainda que a ruptura sonhada em 1989 tivesse de ser conscientemente adiada. Tantos anos postergado, chegara em 2002 o reveillon que não pudéramos comemorar em 1985, com a não-posse de Tancredo Neves. Mas na festa de 2003 cabiam todos, inclusive liberais conservadores e as forças de Sua Excelência, o Mercado, o todo poderoso de ontem e de hoje, pois o novo ministério confirmava os compromissos da “Carta aos Brasileiros”.

A confiança nacional majoritária (leia-se: a torcida quase unânime pelo êxito do antigo torneiro-mecânico) encontrava terreno fértil numa conjuntura político-econômica internacional favorável, alimentada pela crise (que alguns chamam de “decadência”) do monopólio dos EUA, o fracasso do intervencionismo militar unilateral, oferecendo condições para que o presidente comandasse, como desejava, uma política externa que seu chanceler cunharia como “ativa e altiva”. No plano econômico, colhíamos os bons frutos do boom da economia internacional comandada pela China, que crescia ininterruptamente a taxa de dois dígitos/ ano, o que tornou possível contornar a “herança maldita” da era FHC e, não sendo pouco, retomar o crescimento. O País que, em 2002, insolvente, pedira socorro ao FMI, em 2004, após um ano com Lula, passaria a credor daquela agência e via seu PIB marcar 4,9%. Crescera só 0,6% no ano anterior.

A confiança nacional majoritária (leia-se: a torcida quase unânime pelo êxito do antigo torneiro-mecânico) encontrava terreno fértil numa conjuntura político-econômica internacional favorável, alimentada pela crise (que alguns chamam de “decadência”) do monopólio dos EUA, o fracasso do intervencionismo militar unilateral, oferecendo condições para que o presidente comandasse, como desejava, uma política externa que seu chanceler cunharia como “ativa e altiva”. No plano econômico, colhíamos os bons frutos do boom da economia internacional comandada pela China, que crescia ininterruptamente a taxa de dois dígitos/ ano, o que tornou possível contornar a “herança maldita” da era FHC e, não sendo pouco, retomar o crescimento. O País que, em 2002, insolvente, pedira socorro ao FMI, em 2004, após um ano com Lula, passaria a credor daquela agência e via seu PIB marcar 4,9%. Crescera só 0,6% no ano anterior. sopraram a favor da nau lulista (ressalto os méritos do timoneiro) para evidenciar, em contraste, as dificuldades à espreita de Dilma.

A primeira observação é a crise econômica. Vários são seus elementos e entre eles está a reversão da economia mundial, detonada pela explosão da bolha imobiliária nos EUA, a implosão do sistema financeiro internacional e a recessão que em seguida se alastrou pelo mundo, abalando a Europa e o euro. Vivemos, desde 2008, conjuntura agravada pela crise externa, que compromete o bom desempenho da economia brasileira. Dilma, vimos, não conseguiu até aqui livrar-se dos efeitos de dois elementos perversamente contemporâneos: a repercussão em nossa economia (i) daquela débâcle do capitalismo e (ii) a desmoralização da política (que vem de longe), qual a praticamos, e dos partidos, assim como os fazemos. Some-se a essa união diabólica a crise de identidade do PT, carregando consigo – para onde? – o que sobrou de uma esquerda crescentemente inorgânica e fatidicamente sem teoria e prática, e, por isso mesmo, atônita diante de processo histórico que não consegue interpretar.

A crise econômica torna agudos os conflitos com as forças conservadoras e anti-desenvolvimentistas, daí a unanimidade da grande imprensa e as defecções (ou chantagens) de parcelas da base partidária nas votações fundamentais no Congresso. Dilma, desde que ousou contrariar os interesses da banca, ao determinar a queda dos juros que historicamente asfixiam nosso desenvolvimento, tornou-se alvo de sistemática desconstrução de imagem, o que veio a lhe custar a perda do apoio da classe média e de significativas camadas urbanas que, de fundamentais no festejado primeiro ano do mandato, transformam-se no principal obstáculo na corrida para a reeleição.

A opção majoritária da classe média pelo candidato da direita se projetou no pós-eleitoral, está viva, e assim deverá permanecer pelo segundo governo Dilma, cuja instalação, aliás, essa parcela do eleitorado intentou impedir, relembrando a crise que envolveu a eleição, posse e governo de Juscelino Kubitschek. Aliás, a campanha contra Dilma (contra sua eleição e já contra sua posse e governo) se anunciou em junho de 2013, nas primeiras mobilizações de rua e nos apupos nos estádios da Copa das Confederações. Quem não quis ver, não viu, e, não vendo, ignorou o pedido de mudanças. Deu no que quase deu.

O quadro econômico que aguarda a presidente não é tranquilizador, nem no Brasil, nem no mundo. Com muito esforço, chegamos ao fim de 2014 com o crescimento zero do PIB. Festejamos havermos saltado fora da recessão técnica. No plano global, as expectativas não são melhores; o crescimento mundial deve girar em torno de 1%, os BRICS continuarão crescendo a ritmo cadente e a China não passará de 6% ou 7% ao ano. A Europa patina, o Japão se reencontra com a recessão e as taxas de crescimentos dos EUA são modestas. Há uma difícil jornada a ser percorrida até a consolidação política e econômica do Mercosul. A crise europeia acentuará nossas disputas na OMC.

Dilma cedeu, e fê-lo bem, ao dividir São Paulo e acenar para o agronegócio. Anulou duas áreas de atrito. Faz-se mister, entretanto, não perder o rumo estratégico que, afinal, foi o responsável pela sua difícil vitória: manter o desenvolvimento econômico associado à defesa dos interesses da soberania nacional e preservar e aprofundar as conquistas sociais, tudo isso em meio a uma imprensa hostil, a uma crise institucional que se agrava a cada dia, dialogando com 28 partidos políticos que nada representam (com pouquíssimas exceções, vá lá), e ainda dependente de Congresso rejeitado pela opinião pública.

Já no primeiro governo Lula, o presidencialismo de coalizão (“cooptação”, “aquisição”, “aluguel” ou leasing) revelava sua degradação e a democracia representativa afundava na ausência de legitimidade, agravada eleição após eleição, construindo as bases da crise de hoje: a crise da política, do sistema de partidos, do processo eleitoral. Essa crise – que é da representação— alcança seu paroxismo em 2014, e o seu melhor retrato é a composição do Congresso Nacional, cadinho de nossas misérias. A tarefa difícil será facilitada na medida em que a esquerda se reorganize, nossos partidos se reencontrem com as ruas, o movimento sindical (deixando os gabinetes da Esplanada) recupere a política e os movimentos sociais retomem autonomia, tendo como principais eixos de atuação as seguintes bandeiras:

1. Resgatar o papel estratégico da Petrobras na exploração das riquezas do pré-sal, ancorando o desenvolvimento da indústria em extensa cadeia produtiva (P&D, engenharia de materiais, nanotecnologia, robótica, montagem, naval, petroquímica);

2. Atender às demandas da população urbanizada (habitação, saneamento e mobilidade), o que demandará investimentos em pequenas e médias indústrias que empregam mão de obra de baixa qualificação;

3. Apoiar a expansão do agronegócio, capital intensivo, fundamental para a geração de recursos externos indispensáveis ao desenvolvimento. É bom registrar que o desenvolvimento dos EUA desde meados do século 19 tem uma das suas razões no fato de esse país ter-se transformado em celeiro do mundo;

4. Apoiar o desenvolvimento da agricultura familiar, cada vez mais importante no abastecimento de gêneros que chegam à mesa do nosso povo.

ROBERTO AMARAL, ex-presidente do PSB, é autor de Socialismo: vida, morte, ressurreição (Vozes Editora)