A tragédia de 7 de janeiro serve apenas aos conservadores franceses, interessados em reduzi-la a um conflito religioso, afastando a discussão sobre as políticas dos EUA e da Europa em relação ao Oriente Médio e ao norte da África
por Roberto Amaral
Tema complexo e fascinante esse do massacre parisiense de 7 de janeiro. Às vezes me parece que tudo já foi dito, e no entanto sentimos que há ainda algo a dizer, pois é inesgotável a discussão entre os limites da liberdade de expressão e a estupidez ilimitada do terrorismo. A violência da barbárie é um truísmo, e dela não precisamos cuidar, senão de suas consequências políticas mais evidentes, e chorar as vítimas, pois o assassinato é sua matéria-prima.
Como estamos em face de um caso concreto, apartemos da discussão o semanário, porque não está em causa a valoração de seu conteúdo, de seu humor negro e sempre corrosivo, pretendidamente demolidor (‘journal irresponsable’ era seu lema), iconoclasta, anarquista, de um laicisismo que se confunde com antirreligiosismo, uma forma e um jeito de ser apenas possível em democracias maduras. Percorrendo caminho inverso, a imprensa alternativa brasileira, por definição ‘descomprometida’, morreu com a queda da ditadura, exatmente quando mais dispunha de ar livre para sobreviver. Mas este fenômeno pede outra reflexão.
Digamos, apenas, que dentre nós desapareceram todos os que buscavam a crítica política e de costumes pela via humorística, a começar pelo Pasquim, que considero política e editorialmente bem superior ao seu colega parisiense. Na França mesmo, sempre preferi o Canard Enchainé e, aqui, o traço de Henfil, afiado e perfurante como um bisturi, e a ironia do Ziraldo; adoro o José Simão na sua irreverência e morro de saudades do Stanislaw Ponte Preta, ao mesmo tempo em que detesto esse “humor” que tomou conta da decadência televisiva de nossos dias. Pior, só os telejornais. Mas gosto e religião (de que me afasto) não se discutem. Discute-se (dever-se-ia discutir) o empobrecimento da imprensa de humor no Brasil, justamente quando recuperamos a liberdade.
Que o nosso Je suis Charlie seja, portanto, um abraço de solidariedade em Wolinski e seus companheiros, mas seja também nossa homenagem ao Pasquim, ao Pif-Paf, ao Planeta Diário, ao Lampião, todos também devorados. O mesmo ocorreu com a imprensa popular de esquerda, de que é exemplo a destruição do Opinião pela ditadura, asfixiando financeiramente Fernando Gasparian. Ficaram os jornalões e as grandes empresas, gráficas e eletrônicas, e a pobreza embrutecedora do unilateralismo ideológico, uma forma de totalitarismo. Em todo e qualquer caso, o princípio a ser defendido é (deve ser) a ampla liberdade de imprensa, que paira acima de considerações a propósito das linhas editoriais. Princípio que protege, na França, com os mesmos direitos políticos, o direitismo do Le Nouvel Observateur e o cáustico Charlie, que eu classificaria como anarquista de esquerda, de uma esquerda que também era alvo de sua irreverência.
No Brasil, onde não há diversidade editorial, e onde os pequenos veículos têm de concorrer com empresas monopolistas, CartaCapital pode defender o governo e a revistona pode dedicar-se a agredir a verdade e vilipendiar o que quer que seja que insinue o interesse nacional brasileiro. As matérias da revistona e dos jornalões são de extremo mau-gosto, mas isso não está em jogo como não estão sob consideração as charges do Charlie. Mas a revistona e os jornalões não podem, como nós podemos, dizer “Je suis Charlie”, pois são sua antítese.
Sem mas, porém ou todavia, com ou sem explicações sociológicas, antropológicas ou históricas, a liberdade de expressão é o princípio, e a repressão, o crime. Todo massacre é indefensável e todos precisam ser firmemente condenados: o terror de Paris e os assassinatos de palestinos pelo Estado de Israel (o último ceifou quase 2 mil vidas, incluídas mais de uma dezena de jornalistas), e dos EUA contra quase todo o mundo e hoje, principalmente, contra sírios, líbios e afegãos, fazendo do Oriente Médio o inferno na terra.
Esta é uma condenação absoluta, posto que é de ordem moral.
A liberdade é o combustível da aventura humana.
Afora o óbvio que o caracteriza, o terrorismo é covarde e burro. Covarde porque não dá condição de defesa às suas vítimas, age de surpresa, na tocaia, à traição, e burro porque só serve ao inimigo. A quem favorece o ataque ao Charlie Hebdo, senão às forças mais reacionárias dos EUA e da Europa, onde cresce perigosamente um nacionalismo xenófobo e um anti-islamismo racista? A quem serviu o 11 de Setembro senão à política genocida de Bush e seus asseclas, política perdurante sob Obama e perdurante, ver-se-á, sob seu sucessor? O terrorismo de Estado comandado por Nettanyahu – esse criminoso de guerra que, graças ao poderio dos EUA, permanece impune, só contribui para fortalecer o Hamas, manter Israel na condição de Estado marginal no concerto das nações e estimular o antissemitismo que volta a manifestar-se na Europa.
O terrorismo, em nome de dogmas religiosos, ataca o Estado laico (que o Brasil está deixando de ser), esquecido, porque é estúpido, de que ele, o laicisismo, é garantia de liberdade de todas as religiões. Esse terrorismo é utilizado para marginalizar ainda mais, na França e em toda a Europa, os imigrantes pobres, particularmente os provenientes das ex-colônias, os árabes, os turcos, os africanos e os muçulmanos de um modo geral, sobrevivendo do sub-emprego em bairros periféricos e pobres que mais parecem cloacas, sem instrução ou treinamento profissional adequados, e agredidos em suas culturas e em suas religiões.
Esse terrorismo serve apenas a seus inimigos, que dele se aproveitam para satanizar o Islã. A tragédia de 7 de janeiro serve apenas aos conservadores franceses, interessados em reduzi-la a um conflito religioso, afastando a discussão sobre as políticas dos EUA e da Europa em relação ao Oriente Médio e ao norte da África.
Na Alemanha grupos saudosistas do nazismo já patrocinam marchas pedindo a expulsão de árabes e muçulmanos do país.
O terrorismo da Al-Qaeda fortalece os “falcões” do Pentágono e a crescente direita, do velho e agônico continente, fornece argumentos ideológicos para a exploração política dos grupos reacionários que em toda Europa acenam com o autoritarismo como antídoto à falsa “ameaça de islamização”. Faz o jogo dos culturalistas em seu projeto de “civilizar” o mundo (os outros) mediante a imposição, a ferro e fogo, dos valores que os EUA dizem ser aqueles da “sociedade ocidental e cristã”, uma vez mais e sempre em luta contra o mau. Enfim, o dominado faz o jogo dos dominadores. O “choque de civilizações” inventado pelo reacionarismo racista de Samuel Huntington, a serviço do neocolonialismo.
A cobertura da imprensa mundial, ideologizada, a serviço de uma determinada geopolítica, deixou-me preocupado pelo que chamo de seu aparente desapreço ao valor vida, sem a qual a discussão sobre liberdade de imprensa se torna inócua. Pouco se fala nos mortos, na violência da morte em si, como se a violência contra um jornal (mesmo simbolizando a liberdade de expressão) pudesse ser mais grave que o assassinato. Afora os quatro cartunistas, e um policial, por acaso muçulmano, todos os demais foram condenados ao anonimato, ou ao esquecimento, como as trinta/quarenta vitimas fatais de outro atentado terrorista ocorrido na véspera, mas este no Cairo, matando apenas árabes. Dele sabe-se pouco, pois sobre esse massacre a imprensa logo se calou, não nos chegou um só comentário, nem a notícia de algum protesto, como quase não se fala – por quê? – do massacre praticado pelo grupo Boko Haram na última sexta-feira em Baga, na Nigéria, deixando nada menos que 2 mil mortos (numa estimativa aproximada). Preocupa-me a secundarização da vida.
Não cabem limites na defesa da livre expressão, e ela exige a compreensão do contraditório, ou seja, assegurar a palavra daquele que discorda. Como aliás, defendia Voltaire.
O jornalista, humorista ou não, está acima do bem e do mal? O jornal é um sacrário? Evidentemente que não, pois todos somos responsáveis, moral e juridicamente, pelas nossas ações; pelo que escrevemos ou desenhamos. Há o limite subjetivo, do qual o fôro íntimo é o senhor, e há as limitações legais. A Constituição brasileira, por exemplo, proíbe a apologia do crime e o incitamento à guerra, tanto quanto o racismo etc.
Há um quê de separação entre a crônica, o artigo, a reportagem e o texto humorístico, pois a base do humor é a ironia e a exploração do ridículo, ou a ridicularização de sua vítima. A caricatura, uma das mais contundentes intervenções políticas do humor, depende do exagero e da distorção. A piada quase sempre trabalha sobre preconceitos: o machismo, a homofobia, etc. Qual é o limite? O direito do outro, do ofendido – e, para sua proteção, o Estado oferece, bem ou mal, quase sempre mal, como no Brasil, os instrumentos judiciais de defesa da honra injuriada ou difamada ou caluniada. Nas democracias, liberdade e responsabilidade devem ser irmãs siamesas protegidas pelo mesmo direito.
amaral.jpgA liberdade de expressão, que caminha para além da liberdade de imprensa, pressupõe, antes de mais nada, o conflito de ideias e opinião e, dando-lhe concretude, a possibilidade de circulação livre, o que não comunga com monopólio, oligopólio ou cartel, também características da imprensa brasileira, em todos os meios de comunicação de massa.
A monumental marcha de domingo 11 em Paris, ademais da justa repulsa ao terrorismo, evidenciou também – pela mobiliação do aparato estatal (que a transformou em ato oficial) e a presenças de chefes de Estado sem nenhum apreço pela liberdade de imprensa em seus países -, como a emoção das grandes massas, nos seus impulsos de pura fraternidade, pode ser mobilizada para projetos estratégicos de poder e dominação.
Um manifestante, com um cartaz escrito à mão encerra toda a complexidade: ”Je marche, mais je suis conscient de la confusion et de l’hypocrisie de la situation.” (“Eu marcho, mas estou consciente da confusão e da hipocrisia da situação.”)
Roberto Amaral