A vitória da direita traria graves prejuízos para a estabilidade política da América do Sul e deitaria por terra a vitoriosa política brasileira de aproximação com a África
por Roberto Amaral — publicado 22/10/2014 em Carta Capital
O suicídio histórico está à mão de todos, inclusive dos partidos. Quantas organizações já floresceram em nosso solo e nele encontraram seu féretro? Na Europa de hoje vive-se a agonia dos antigos partidos socialdemocratas (como o Partido Trabalhista inglês) e socialistas, como o lamentável Partido Socialista francês ou o Partido Socialista Operário espanhol. Antes, se haviam desnaturado os partidos comunistas ortodoxos, de especial o esperançoso Partido Comunista Italiano de Gramsci e Togliatti. Uns e outros, e nós aqui, a esquerda de um modo geral, não conseguimos nos desfazer, racionalmente, dos escombros do Muro de Berlim. Mirando sem olhos para ver, sem engenho e arte (ou coragem), renunciamos à missão de construir, ou pelo menos projetar, o socialismo do século XXI. O passado nos prende e o futuro assusta.
O fato de a ascensão do pensamento conservador ser hoje dominante nas democracias ocidentais, a começar pelas europeias, torna ainda mais perniciosa a ameaça de retrocesso do quadro político brasileiro, seja em face de seu significado intrínseco – as implicações sobre o futuro de nosso País e de nossa gente – seja em face de suas consequências geopolíticas. A vitória da direita traria graves prejuízos para a estabilidade política da América do Sul e deitaria por terra a vitoriosa política brasileira de aproximação com a África, lá deixando o caminho aberto para os interesses da China e outros concorrentes. Significaria ainda o retorno ao papel subordinado que nos anos FHC desempenhou a política externa brasileira, a desarticulação do Mercosul, a retomada da Alca em outros termos, o enfraquecimento do BRICS – por fim, a renúncia a uma política soberana. O Brasil, como anuncia o principal porta-voz do tucanato, o cônsul honorário de Wall Street com escritório na Fiesp e espaço nos jornalões, voltaria a falar grosso com a Bolívia e fininho, pianinho, com as grandes potências, às quais nossos interesses – políticos, econômicos e estratégicos – estariam, de novo, condicionados.
É imperativo evitar tudo isso.
O retorno do neoliberalismo significaria a renúncia ao nacionaldesenvolvimentismo, com a recuperação da ortodoxia monetarista, o arrocho fiscal que só pune o pobre, beneficia o sistema financeiro e o capital improdutivo, o rentismo e a especulação, a roleta artificial das bolsas. A velha e cediça lição do FMI da qual nos livrou o atual governo: corte de gastos sociais, contenção dos juros e redução do crédito, tarifaço, arrocho salarial, ‘flexibilização’ das leis trabalhistas. Já vimos isso aqui e estamos vendo o que estão fazendo na Europa. Sabemos, pois, no que dá.
O candidato da direita já anunciou quem seria seu ministro da Fazenda. Dúvidas, portanto, não há. E não é sem motivos que a Economist, conspícua representante do conservadorismo inglês, lhe anuncia apoio.
É preciso cuidar, pois a emergência do pensamento conservador é a ata das eleições encerradas no primeiro turno. Mas não é fenômeno puramente eleitoral; bem ao contrário, esse declive reflete a nova paisagem ideológica do país, tendente a se consolidar se a ela não reagirmos. Presente nos mais diversos estratos sociais, quase sempre associado a preconceitos e ao primitivismo ideológico, que na Europa já descambou para a xenofobia, percorre o vasto tecido das relações político-sociais.
Dois indicadores desse retrocesso: a candidatura tucana haver passado para o segundo turno, e a composição da nova Câmara dos Deputados, que anuncia uma legislatura ainda pior do que a atual. Tal tendência, reacionária, cujas consequências ainda não podemos medir, não é obra pura da direita, poderosíssima, mas de gritante mediocridade ideológica. Para esse reverso muito contribuíram a degeneração dos partidos em geral, e, muito particularmente, a vitória, nas chamadas hostes progressistas, do oportunismo batizado de pragmatismo eleitoral, rompendo com compromissos históricos, alianças e programas. Essa esquerda à qual me refiro confunde-se, no mundo objetivo, na prática do dia a dia, com a direita e as forças conservadoras, pois, a exemplo delas, adota como programa e meta, tática e estratégia, a política do poder pelo poder, descasado dos fins e, assim, renuncia à praxis.
Revelação do desconforto popular é o sentimento generalizado de que o voto não é instrumento de mudanças. Dos cerca de 143 milhões de cidadãos aptos a votar no primeiro turno, nada menos de 29% se abstiveram de votar, votaram nulo ou em branco.
O diagnóstico, porém, de nada valerá se a ele não se seguir a ação pronta das forças progressistas e populares.
A questão, afinal, é essa: não se explica a ascensão da direita sem por na mesa a crise da esquerda. Ao mesmo tempo em que renegamos o passado, não nos preparamos para a tarefa de construir o futuro, que bate à porta. Tudo acriticamente. Sem formulação, perdemos a militância e, por fim, perdemos o debate que não enfrentamos. Nunca a ausência de firmeza ideológica foi, como presentemente entre nós, tão decisiva na paralisia da praxis. Lá e cá. Aqui, o partido fundado para a pregação socialista democrática, de uma esquerda avançada, livre da memória stalinista, associa-se à direita, renuncia a si mesmo, suicida-se e renega a biografia de seus fundadores.
Independentemente de filiação partidária, dispomos, a sociedade, de menos de uma semana para enfrentar o vazio que nós mesmos, a esquerda orgânica, cavamos. Há muito o que fazer e a principal tarefa é, contra a ascensão do conservadorismo, estimular a participação popular.
Para tanto é fundamental deixar claro que a escolha que interessa ao povo e ao País, não está restrita a esse bipartidarismo de fancaria que, segundo os interesses da classe dominante, opõe PT e PSDB. Não está mesmo em jogo a moralidade e o zelo à coisa pública, embora o tema esteja a exigir a autocrítica dos governantes. Ouso dizer, não estão em jogo nem mesmo as aptidões de Dilma e os defeitos de Aécio. Joga-se no próximo dia 26 o destino deste País. Nas urnas diremos se ainda perseguimos uma sociedade em busca da justiça social que, sem ignorar os conflitos de classe, protege agora os pobres diminuindo as distâncias sociais e aumentando as condições objetivas de ascensão social, mediante a produção de riqueza e sua redistribuição – matizada, é certo, pelo regime em que vivemos. Os últimos 12 anos mostraram que, não obstante essa realidade miserável imposta pelo capitalismo, é possível governar tendo como norte o interesse coletivo, a proteção do trabalho e dos trabalhadores, dos assalariados em geral, e a primazia dos interesses dos pobres, dos mais pobres e a extirpação da miséria, sem prejuízo do desenvolvimento.
Por que e em nome de que renunciar a esse avanço histórico?
A opção que se coloca para o eleitorado brasileiro é entre atraso e progresso, passado e futuro, medo e esperança. Haveremos de apostar no melhor caminho.