por: Roberto Amaral
Postado na Carta Capital on line no dia 30/07/2014
Israel ocupa a Palestina e tratá-lo como vítima é pretender negar o último direito que assiste ao invadido: lutar contra a ocupação
Logo no início da Segunda Guerra Mundial, já em 1939, a então Tchecoslováquia foi invadida e ocupada pelas tropas alemães. Seus cidadãos foram transformados em súditos do Reich, seu exército incorporado às tropas nazistas e seu governo era agora o governo alemão. Mesmo o esmagador poder da guerra, porém, não silencia os patriotas. A resistência à ocupação se fez e ela era civil, como seria, anos mais tarde, a resistência dos maquis na França, dos partisans na Iugoslávia e em todos os países ocupados, reunindo, entre outros, comunistas, judeus e cristãos. As ações de resistência eram óbvias porque não há um leque de opções quando se confrontam o exército ocupante com os grupos civis da resistência: pequenos atentados, sabotagens, assaltos para a obtenção de armas, assassinatos de oficiais da SS, ações de guerrilha, enfim, o que possível fosse nos termos da abissal assimetria de forças.
Reinhard Heydrich era um oficial alemão das tristemente notórias SS, conhecido pela sua violência contra todos os tchecos, mas principalmente comunistas, ciganos e judeus. Carregava o pomposo título de ‘Protetor do Terceiro Reich na Boêmia e Morávia’ ocupadas. Foi um dos idealizadores da ‘Solução final’, mas era, acima de tudo, dileto amigo de Hitler e Himmler.
As circunstâncias colocaram o criminoso de guerra e a resistência no mesmo cenário. No dia 27 de maio de 1942, dois jovens tchecos, treinados pela inteligência inglesa, que dava assistência logística e militar à resistência, conseguem realizar com sucesso um atentado contra Heydrich. Ferido, o oficial da SS morreria uma semana depois.
Lídice era uma pequena aldeia mineira da Boêmia, a poucos quilômetros de Praga, capital da Tchecoslováquia, onde se dera o atentado. Contava com algo como 500 habitantes.
A reação guerrilheira era insuportável para o Reich. Hitler ordena o extermínio do vilarejo, onde, supunha a SS, se escondiam os ‘terroristas’. No dia 10 de junho daquele ano de 1942 a cidade foi cercada pelas tropas nazistas, seus habitantes, judeus ou não, comunistas ou não, homens maiores de 15 anos foram presos e no dia seguinte fuzilados; as mulheres e crianças enviadas para o campo de concentração de Ravernsbruck onde, na sua grande maioria, viriam a morrer, muitas de fome.
Mesmo assim o ódio não se aplacara. Morta sua gente, a própria cidade física precisava ser punida, como retaliação ao mau passo de sua gente, servindo a vingança hedionda de exemplo do que poderia acontecer contra quem ousasse desafiar o invasor. Lídice foi destruída, casa por casa, edifício por edifício, foram explodidos e os escombros aplainados por tratores. Ficou a terra lisa, mais tarde transformada em campo de centeio. Ainda não era, porém, suficiente para aplacar o ódio paranoico. Hitler mudou o curso do rio que servia à cidade e determinou sua retirada do mapa da Tchecoslováquia. Mas a sede de vingança do monstro luciferino era insaciável. Outra cidade, Lezaky, pagando pelo mesmo crime, foi destruída e seus habitantes assassinados, e assassinatos ensanguentaram todo o país, pelo ‘crime’ de não haver-se conformado com a ocupação. Ao todo a História estima em 1.500 o número de mortos nessa vingança. Naquele ano, então sem a cobertura jornalística dos nossos dias, os alemães cuidaram de divulgar o grande feito, como advertência a todos os resistentes da Europa ocupada. Era preciso mostrar que não se estabeleciam limites na retaliação. Os ingleses, por sua parte, produziram um filme, ‘A vila silenciosa’, e muitos e muitos outros filmes foram produzidos pelo Ocidente (para os cinéfilos sugiro O Assassínio de Reinhard Heydrich, Massacre e genocídio, a história de Lidice, Lidice Lives; mini-documentary e The Launch of the “Lidice Shall Live Campaign” – Stoke-on-Trent Sept 6th 1942).
Moral da história: um alemão vale 1.500 Tchecos.
O símbolo da hediondez nazista, porém, não foi esquecido e o mundo homenageia suas vítimas batizando cidades e vilas com o nome da cidade Tcheca que, assim, contrariando a vontade do Reich, jamais seria esquecida. Em homenagem às vítimas tchecas batizamos de Lídice, no Estado do Rio de Janeiro, a 40 quilômetros de Angra dos Reis, a antiga cidade de Santo Antônio do Capivari. Vale a pena conhecê-la. No centro da cidade o visitante verá a estátua de uma Fênix, símbolo do renascer contínuo.
Esse genocídio não era o primeiro nem seria o último. Antes, em 1937, Guernica, a cidade basca da Bascaia, com 4.500 habitantes, foi bombardeada e totalmente destruída por aviões alemães. Dela, em sua memória, mas acima de tudo como denúncia da barbárie, ficou a obra-prima de Picasso.
Assim, nem a barbárie nem suas vítimas serão esquecidas.
A Faixa de Gaza é uma faixa de terra de 40 quilômetros de extensão e menos de 10 de largura, onde se espremem dois milhões de palestinos desterrados, que dela não podem sair. São palestinos que perderam suas terras em 1948 (onde hoje é Israel era PalestIna) para que pudesse ser criado o Estado de Israel, cujo território, todavia, não para de crescer desde a guerra de 1967, ocupando territórios árabes (Cisjordânia e Jerusalém Oriental), sírios (as Colinas de Golã) e libanees (as Fazendas de Sheba). Gaza está sitiada, bloqueada por terra, mar e ar por Israel, controla a entrada de alimentos, o fornecimento de água e energia, o trânsito de seus habitantes e seu comércio. Os ocupados, porém, não aceitam a ocupação, e resistem. Gaza, por isso, é acusada de abrigar terroristas, responsáveis por incursões aos territórios ocupados por Israel que tentam atingir com ataques de misseis artesanais, quase sempre frustrados. Esta é a justificativa para o cerco a Gaza, o bombardeio aéreo, terrestre e marítimo de sua população civil e, finalmente, sua invasão. Não há o clássico teatro de guerra. Os ataques são desferidos contra conjuntos residenciais da mais densamente populosa faixa de terra do mundo, e atingem escolas, mesquitas, hospitais e mesmo instalações da ONU, a inerte. Qualquer cifra relativa ao número de mortos e feridos está desatualizada logo após seu anúncio. No sábado 26, quando do início da trégua para que os palestinos pudessem catar seus mortos, esses se contavam em mais de 1.500. Irrelevante lembrar que a cidade também está sendo destruída, mas ainda com seus habitantes. O objetivo desta feita é vingar o injustificável – sob todo e qualquer ponto de vista– assassinato de dois jovens judeus (que implicou o assassinato de um jovem palestino por colonos judeus) e desaconselhar os resistentes à insurgência contra o invasor. (A propósito, há forte indícios de que o Hamas não é autor do sequestro e assassinato dos jovens israelenses).
O que ocorre em Gaza não é uma guerra, não se trata de guerra quando de um lado morrem mais de mil (contam-se em mais de cinco mil o número de feridos e não se conhece o número de desabrigados e desaparecidos) e de outro menos de 50, esses, vítimas do braço armado do Hamas, que ganhou as eleições em Gaza, e o Fatah, que administra parte da Cisjordânia.
Não se pode falar em guerra quando de um lado estão inatingíveis pilotos de bombardeiros, condutores de tanques, operadores de radar e de mísseis acionados por controle remoto, e de outro civis em suas casas, ou procurando proteção em escolas, hospitais e mesquitas, que não são mais abrigo, pois também alvo das bombas. Não é guerra o conflito que opõe de um lado forças armadas poderosíssimas, exército sofisticadamente equipado e, de outro, um povo desarmado, sem direito ao seu território, sem direito a ter seu Estado. É preciso lembrar: Israel ocupa a Palestina e tratá-lo como vítima é pretender negar o último direito que assiste ao invadido: lutar contra a ocupação. O nome disso a que estamos assistindo, pela enésima vez, não é apenas massacre covarde, é genocídio planejado. A desproporção bélica é ainda maior do que a de vítimas, simplesmente porque é abissal: os civis palestinos (lembrando, Gaza não dispõe de forças armadas) enfrentam o sexto maior exército do mundo que, ademais, se isso não fosse bastante, tem ainda a assistência e o apoio do maior exército do mundo, o dos EUA, que, aliás, são tão ou mais responsáveis – por ação e omissão— pelo genocídio em curso. No ataque à escola mantida pela ONU, a inerte, pereceram 15 pessoas, entre mulheres, crianças e funcionários das Nações Unidas. Pelo menos 200 feridos. Não se trata da morte de soldados em combate, homens e mulheres treinados para a guerra, para matar e morrer. Os palestinos de Gaza são treinados apenas para a última hipótese.
O exército israelense se defende dizendo que, antes de matar, avisa que vai matar, para que as futuras vítimas procurem abrigo. Se não encontram, ou se os que encontram não têm serventia, ora… que arquem com as consequências.
É uma cretinice igualar moralmente e por isso pedir igual condenação para a violência assimétrica, o que, em última análise, valeria como absolvição do agressor, e na hipótese há um Estado agressor, e este Estado tem nome, e seu nome é Israel. É cretinice esquecer que o Estado de Israel ocupa território palestino, e impede que o povo palestino se organize como Estado, e é pura cretinice ignorar que em Israel o mais de um milhão de árabes que lá habitam são vitimas de um apartheid que na história contemporânea só encontra similar no apartheid da África do Sul racista.
São quase 70 anos de genocídio, um quase século de silêncio, uma das mais pérfidas formas de ação. Onde está a autodenominada civilização ocidental e cristã, cuja omissão retira-lhe o que lhe restava (se lhe restava) de autoridade moral? O humanista que se cala renuncia ao humanismo, e sua proclamação independe de justificativas ou razões éticas ou morais.
Onde está, se é que existe, se ainda existe ou se alguma vez existiu, a ‘opinião pública internacional? Diante da covardia do mundo aprisionado pelo sistema financeiro internacional, só nos resta a condenação moral.
Enquanto isso, a imprensa europeia, principalmente francesa, registra sintomas do que chama de ‘novo antissemitismo’, no qual, na Alemanha, tomam carona as inefáveis hordas saudosistas do nazismo. Um atraso histórico e civilizacional, que ameaça a Humanidade. Que estará espicaçando esses sentimentos primitivos, que tanta miséria já nos causaram?
Na terça-feira 29, em Rafah, palestinos acompanham o funeral de membros de três famílias que foram mortos em um bombardeio israelense em Khan Younis