Texto revisto (janeiro de 2014) de depoimento concedido por Roberto Amaral no dia 9.10.2013 sobre os 25 anos da Constituição de 1988
Elisabeth Dereti – Liderança do PSB na Câmara
JOrn. – O senhor publicou recentemente em seu Site Pensar Brasil um artigo do Sr. José Viegas Filho “Embaixador” onde ele faz uma análise pontual a respeito dos defeitos da Constituição, o que foi regulado e o que não foi ainda e ele diz ainda que uma Constituição não pode fazer tudo e, ao focalizá-la como obra jurídica devemos também focalizá-la a sua implementação, a sua obra política. À época em que foi promulgada, a CF foi vista como uma concretização física da redemocratização no Brasil. O senhor acredita que durante estes 25 anos ela continuou exercendo este papel e que seja vista da mesma forma ainda hoje?
RA- A Constituição é a norma suprema a presidir a ordem jurídica de um país, regulando e disciplinando todas as relações de seus nacionais, de cuja vontade é portadora. Supõe povo livre, independência política e soberania. Em síntese, autonomia para autorganizar-se e autodeterminar-se. A relação entre sua disciplina e a vontade popular dá a medida de sua legitimidade, aferível pela sua incolumidade.Documento histórico, contemporâneo, toda Constituição tem a distingui-la seu caráter ideológico-simbólico;organizando o Estado, procura identificar um norte, um caminho, um projeto de e para um determinado povo, determinada nação, e, às vezes, até, para determinada civilização. Bom exemplo é a Declaração Universal dos Direitos do Cidadão que a Revolução Francesa(1789) legou à Humanidade Ocidental. Trata-se de texto seminal.
A Constituição Francesa, fruto da primeira grande revolução do período moderno, tinha por objetivo consolidar a superação do ancien régime (monárquico, aristocrático e clerical) e assegurar os novos tempos dos nascentes governos da burguesia. Em tese, o discurso constitucional diz um não ao passado – isto é, à ordem antecessora– e aponta para um determinado futuro (a nação projetada no tempo) a construir, papel ao encargo dos que vêm depois dos constituintes. Toda ordem jurídica padece de limitação temporal, corrigida ora pela nova legislação, ora pelos julgados dos Tribunais, variando apenas, de país a país, os limites da intervenção jurisprudencial.
A tradição brasileira não fugiu à regra e nossos textos, a começar pela Carta fundadora de 1824, intentam desempenhar aquele papel a um tempo revolucionário e didático, ainda quando não derive de ruptura política, social ou econômica. Nossa primeira Constituição inaugurava o Estado independente e instalava o Império. Embora rompesse coma condição colonial, não conhece rupturas, como, por exemplo viveram os EUA com sua Revolução (1776) cujo estuário seria a Constituição de 1787.Entre nós foi possível promover mudanças políticas sem alterações sociais ou econômicas, e as rupturas foram substituídas pela concertação. No Império e na República.
Inspirada na Constituição dos EUA, a Constituição brasileira de 1889 — que sobreviveria até 1930 — procurava, a um só tempo, negar a Monarquia e construir a República, em que eram pouco versados seus redatores, e a Federação, em país ainda hoje unitário. Assim, províncias que jamais pleitearam independência em face do Poder Central, foram declaradas independentes, para, livres, poderem associar-se a uma Federação em crise desde sua instituição. Esta Constituição, por óbvio, como todos os textos similares, refletia a ordem econômica de então, com seus donos do poder. Era o texto possível de um Brasil atrasado, sem opinião pública, de ‘eleições a bico de pena’ e mandatos (inclusive dos constituintes) sem legitimidade, sem representatividade, uma República implantada sem campanha republicana, artificialmente positivista,num Brasil latifundiário, ágrafo, recém liberto do escravismo, a vida política restrita aos poucos senhores da terra. Essa Constituição, depois de desnaturada pela Emenda Bernardes (1926)foi substituída por um texto que não lograria vigência plena. Fruto de uma Constituinte convocada como resposta conciliadora da ditadura aos pleitos constitucionalistas do levante paulista de 1932,a Constituição de 34, chamada de a Weimar brasileira, calcada que fôra naquela constituição alemã de 1919, dava as costas para o autoritarismo estrutural da sociedade rural brasileira, e apontava para um liberalismo acrônico. Construída em plena ditadura do Governo Provisório resultante da ‘revolução’ de 1930, redigida por constituintes eleitos nesse mesmo tempo político,seria revogada pelo golpe do ‘Estado Novo’ (1937) que outorga uma Carta conhecida por ‘polaca’, de conteúdo fortemente concentrador,pois suas raízes iam ter no terreno das constituições fascistóides que já empolgavam uma Europa já a caminho da guerra.Não obstante suas matrizes reacionárias, compatíveis com o regime que a ditara, é sob esse Regimento que Vargas fundará o moderno Estado brasileiro. Em face da realidade objetiva, 1937-1945 enseja a exacerbação do presidencialismo, que sobreviverá com avanços e recuos nos próximos textos.
Esperaríamos muito por uma Constituição legitimada pelo pronunciamento da soberania. Assim, a primeira Constituinte apoiada em alguma representatividade ade 1946, é ainda que produto de sistema eleitoral manipulado, desnaturado pela fraude franca, pela ingerência sem controle legal do poder político e do poder econômico, do mandonismo local, dos senhores de baraço e cutelo do processo político-eleitoral. Nesse Brasil, ainda na expectativa de sua industrialização tardia, o eleitorado, principalmente nos chamados‘grotões’, era conduzido por ‘cabos eleitorais’ assalariados por ‘chefes políticos’ que controlavam a vontade popular como em suas fazendas os ‘coronéis’ cuidavam do gado estabulado. É nessa ambiência sócio-política que os constituintes são eleitos com a missão de dotar o pais de uma carta democrática.
Esses constituintes, todavia, sorte nossa, reúnem-se animados pela vitória dos aliados contra o nazifascismo, e a ascensão, com a emergência da URSS, das ideias socialistas. São os tempos do fortalecimento da democracia e da consagração dos direitos trabalhistas e sociais, do papel do Estado como indutor do crescimento, da recuperação da Europa pós-guerra sob um novo keynesianismo. É, a rigor, a primeira oportunidade de testar a democracia representativa e uma vida partidária minimamente digna, com partidos realmente de âmbito nacional e representando interesses definidos na sociedade brasileira.Desta Constituição de 1946 podemos dizer tratar-se da mais significativa[ou mesmo a primeira] Constituição democrática brasileira, e, como as anteriores, orientada pelas imagens do retrovisor. Fruto do golpe-de-Estado que derrubara o ditador (1945), tenta vacinar as instituições contra o regime revogado. Consagra os direitos democráticos clássicos, e pela primeira vez uma Constituição brasileira se refere a partidos políticos, aquele elemento sem o qual não se pode, ainda hoje, falar em democracia representativa, projeto que não encontrou terreno fértil entre nós.Trata-se de documento analítico cuja vigência efetiva de seus principais avanços ficou na dependência de regulamentações jamais efetivadas pelo Congresso, desde sempre pouco cioso de suas obrigações constitucionais. Entre outras iniciativas progressistas viraram letra morta as prescrições relativas ao direito de greve, à remessa de lucros para o exterior e à reforma agrária. Quando caminhava para a maturidade, depois de sobrevier a inumeráveis ataques (quantas emendas sofreu a Constituição de 1946?), golpes e tentativas de golpes-de-Estado, foi revogada pela vitoriosa intentona de 1964, que anunciara sua defesa. Ainda não havia completado 18 anos!
Lembrando a origem da Constituição de 1946, a Constituição ‘cidadã’, vem para reorganizar o Brasil após 20 anos de ditadura. Seu grande mérito e neste ponto ela se distingue da Constituição de 1946, foi haver assegurado, levo em conta o momento vivido, a segurança institucional. Se a Constituição de 1946 resistiu às tormentas – principalmente 1954, 1955 e 1961— o mérito da Constituição de 1988 terá sido o de superar seguidos os abalos nesses seus primeiros 26 anos de existência, ao conviver com medidas provisórias e emendas ao seu texto. Quando atribuo tal feito a um texto constitucional, estou, evidentemente, procurando construir um símbolo, sem esquecer-me do processo social e do de papel seus agentes.
Vejamos o triste resumo da vida democrática em nossa República.
– O período que vai de 1889 a 1930 soma 41 anos de governos apartados da democracia representativa. São os tempos das oligarquias rurais, da ‘República do café-com-leite’. De 1930 a 1945 sofreríamos nada menos de 15 anos de ‘governo provisório’ e ditadura plena (‘Estado novo’) com o irrelevante intermezzo representado pela vigência da frágil Constituição de 1934-37.
Assim na vigência descontinuada de quatro constituições democráticas (nesse número excluídas as cartas dos Estado Novo de Vargas e da ditadura da UDN) de 1889 aos nossos dias, viveu a República, a crise militar do governo Epitácio Pessoa, as greves proletárias de 1917 e 1920, a revolta dos ‘18 do Forte de Copacabana’ (1922), o levante dos tenentes em São Paulo e a Coluna Prestes (1924), a já referida reforma constitucional de 1926 patrocinada pelo governo Bernardes (com o objetivo de fortalecer o presidencialismo e nele, por óbvio, o papel do presidente da República) a chamada Revolução de 30 e a ditadura do ‘governo provisório’, o levante paulista de 1932, a Constituinte de 1934 e a eleição indireta de Vargas para presidente, constitucionalizando seu poder, a tentativa do golpe comunista em 1935, o golpe 1937 e a instauração do Estado Novo, o putsch integralista de 1938, a derrubada da ditadura em 1945 e a redemocratização de 1946, fechando um velho e cansado ciclo e abrindo um novo ciclo democrático, de curta duração, veremos.Na chamada ‘República de 1946’o país foi abalado pela crise de agosto de 1954, a ‘República do Galeão’, e o golpe militar que se consumou no suicídio do presidente Vargas (o ditador havia sido eleito Presidente da República no pleito direto e democrático de 1950), e a posse de Café Filho sob condicionantes militares, a tentativa de golpe-de-Estado visando a impedir a posse dos eleitos no pleito presidencial de 1955 (Juscelino e Jango), os golpes-de-Estado que redundaram nos simultâneos impedimentos de Café Filho e Carlos Luz (11 de novembro de 1955), que passaram para a história como o ‘11 de novembro’, as intentonas (FAB) de Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959), a eleição de Jânio Quadros (sucedendo a Juscelino) em 1960, a crise decorrente de sua tentativa de golpe ea renúncia à Presidência da República, o veto dos militares à posse do vice-presidente constitucional, João Goulart, a resistência do Rio Grande do Sul comandada pelo então governador Leonel Brizola e o levante popular nacional exigindo o cumprimento da letra constitucional, a primeira conciliação de Jango e dela conseqüente o golpe-de-Estado parlamentar que implanta o Parlamentarismo (1961), o plebiscito revocatório do parlamentarismo (1963), e, finalmente o golpe-de-Estado (1964) que derruba o Governo João Goulart, revoga a Constituição e institui a mais longeva ditadura brasileira. A segunda e definitiva conciliação de Jango é a renuncia à resistência com a opção pelo internamento no Uruguai, de onde jamais retornaria.
– Mesmo a ditadura militar conheceu seus abalos. Como tal assinalo, o primeiro golpe dentro do golpe representado pela prorrogação do mandato do primeiro ditador, a difícil assimilação da candidatura Costa e Silva na sucessão do Marechal Castello Branco.O maio de 1968 e a irrupção estudantil, o assassinato do menino Edson Luís no restaurante estudantil do Calabouço (RJ), desmontado posteriormente pela ditadura, a frustrada tentativa de constitucionalização do país,a enfermidade e morte do presidente Costa e Silva, o veto e o impedimento da posse do vice-presidente Pedro Aleixo, o segundo golpe-de-Estado dentro do golpe com proclamação do AI-5 posse da Junta Militar o fechamento do Congresso, reabertura do Congresso para eleger o general-presidente escolhido pelas forças militares, o quase-levante dos pára-quedistas, a posse de Médice, Guerrilha do Araguaia (1972-1975), primeiras ações armadas na resistência à ditadura, sequestros de embaixadores, posse de Ernesto Geisel, retomada das cassações políticas de mandatos de parlamentares fechamento do Congresso, o ‘Pacote de abril’(1967), atentados terroristas perpetrados por militares (Conselho Federal da OAB e Câmara Municipal do Rio de Janeiro), tentativa de atentado do Riocentro, emenda Dante de Oliveira e início da campanha pelas ‘diretas-já’, o maior movimento de massas da República,agonia do regime militar, implosão do colégio eleitoral, e, finalmente, posse condicionada de José Sarney na Presidência da República.
A Constituição de 1988 é a condensação de tudo isso e depositária das esperanças do povo brasileiro.
O movimento conhecido como ‘Diretas-já’ — a mobilização popular visando a pressionar o Congresso Nacional a aprovar a chamada ‘emenda Dante de Oliveira’ — que instituía eleições diretas para a Presidência, pede algumas observações.
– Podemos dizer que a República conhece três grandes movimentos de massas. O primeiro deles, nos anos, foi sem dúvida a campanha ‘O Petróleo é nosso’. Em 1961,outra grande mobilização popular (de agosto/setembro de 1961), intensa e curta, assegura a posse de João Goulart, vetada pelos militares. Destaca-se como terceiro grande momento de mobilização popular, já na longa agonia do regime militar,a campanha pelas‘Diretas Já’ fortalecida pelas eleições de governadores oposicionistas (1982) nos principais e mais populosos Estados da Federação, como Brizola no Rio de Janeiro, Franco Montoro em São Paulo e Tancredo Neves em Minas Gerais.A primeira mobilização popular de rua contra a ditadura, todavia, já eclodira em 1968, com a ‘passeata dos 100 mil’ no Rio de Janeiro.Perdendo a batalha pelas eleições diretas, o movimento de massas, porém, desestabiliza o Colégio eleitoral montado pela ditadura para eleger presidente da República o ex-governador biônico (SP) Paulo Maluf, mas que termina elegendo o candidato da oposição, Tancredo Neves.A história, porém, é useira e vezeira em pregar peças. Em meio à festa na véspera da posse o povo nas ruas, nas praças, nos bares, nos lares comemorando a posse do ex-governador mineiro — a grande vitória da democracia após tantos anos de ditadura, mesmo considerando a eleição indireta–, descobre que,por razões que já pertencem à História, ao invés do eleito Tancredo, ‘o tio da Nação’, quem estava escalado para tomar posse na Presidência da República era o vice José Ribamar Sarney, ex-presidente da Arena, o partido de sustentação da ditadura. Sob a presidência de Sarney, e pôr ele convocada, reunir-se-á a Assembléia Constituinte que em 1988 promulgará a Constituição dita ‘cidadã’, acusada,desde o nascedouro, de ‘inviabilizar a governabilidade’.
Mas será que a população, que o eleitor brasileiro, tinha a consciência de ter elegido José Sarney?
Tinha. O povo é mais inteligente (e muito mais sério)do que a classe dominante brasileira. Ninguém engana o povo. Ele pode dar uma derrapada aqui e acolá (não aceitou eleger Collor?), mas, no processo histórico, ninguém o engana.
– Outros fatos políticos importantes, ainda durante a ditadura, foram, primeiro, a campanha pela Anistia, e, finalmente,sua concessão, pelo Congresso, por iniciativa do último presidente militar, cujo nome não menciono a seu próprio pedido.A Anistia então possível foi parcial e restrita, pois refletia uma correlação de forças ainda desfavorável ao movimento democrático.De um lado, acena com o apaziguamento da política brasileira, e permite o retorno dos líderes exilados– cito apenas três, Brizola, Arraes e Prestes–, fortalecendo os quadros oposicionistas. Tratava-se da aplicação, vitoriosa, da ‘doutrina Golbery’ de transição lenta e condicionada da ditadura a um regime mais ou menos democrático, sob controle militar. Por outro lado, sem a ouvida do povo brasileiro, essa Anistia estendeu um manto indevassável de imunidade sobre os assassinos e torturadores da ditadura, militares e civis, manto que até hoje não foi possível levantar, não obstante 30 anos de progresso democrático. A manutenção dos termos dessa anistia está no cerne da concordatta negociada com os militares, de que derivou, além do governo Sarney, uma série de concessões, como a garantia de impunidade dos militares criminosos e as limitações da Assembléia Constituinte.
Jorn. E a Deputada Erundina continua combatendo fortemente até hoje….
RA – … Infelizmente, ela é uma voz quase isolada na pasmaceira política brasileira imposta pelo pragmatismo eleitoral que assola os partidos e a política.
Fenômeno sócio-político-histórico, nenhuma Constituição tem história própria. Seu papel, raramente alcançado é acomodar os interesses de classe, necessariamente contraditórios, conflitantes quase sempre, presentes em toda sociedade. Quando predominam os ventos democráticos e progressistas, a Construção, ainda naquele processo de acomodação, procura proteger os direitos das classes chamadas subalternas, porque elas precisam sobreviver para que o sistema de pesos e contra-pesos que equilibra a dominação de classe funcione.
O sistema constitucional brasileiro é uma das muitas faces da história do Brasil, caracterizada, desde sempre, desde a Independência, pela conciliação, o acordo, o pacto, a transação, muito próxima da traficância, por fim, da composição no sentido italiano da concordatta, que reflete, como espelho.Se nossa formação tiver uma marca, será esta: a conciliação.É o que passo a demonstrar.
A Independência, não resultou seja de uma revolução de libertação nacional (presente, por exemplo, na America hispânica e nos EUA), seja de um movimento de massas. Ao contrario, foi tecida predominantemente por tricas palacianas conciliadas mediante negociata levada a cabo com o Império Britânico. Os fados fizeram com que nosso herói fosse o príncipe herdeiro, português, afastando-se da Corte de seu pai, e a conselho deste, pondo a coroa em sua cabeça antes que um aventureiro tomasse a iniciativa.A abolição da escravatura, que em outras plagas conheceu revoluções e guerras de secessão, atendeu a pressões do governo de Sua Majestade Britânica, sempre ele, dedicado à proteção de suas colônias produtoras de açúcar,ameaçadas pela concorrência brasileira, beneficiada pela mão de obra escrava. No plano legislativo, essa negociação se fez por etapas, na sequência de um gradualismo que durou 38 anos, pois seu objetivo, ao final alcançado, alcançado, era evitar abalos abruptos na economia escravocrata. Começa em 1850, com a proibição do tráfico interatlântico de escravos (Lei Eusébio de Queiroz),quando nossos navios negreiros já estavam sendo apresados pela marinha inglesa.Vinte e um anos mais tarde, em 1871, foi promulgada a Lei do Ventre-Livre (declarava livres o filhos de escravos nascidos a partir daquela data), e, em 1885, a lei Saraiva-Cotegipe, também conhecida como Lei dos Sexagenários, que beneficiava com a liberdade os negros com mais de 65 anos de idade. Foi somente em 13 de maio de 1888, quando o tráfico estava interditado, inclusive o tráfico interno, eram livres os negros nascidos no Brasil e os maiores de 65 anos, que, através da Lei Áurea(13 de abril de 1888), a liberdade total, mas formal, jurídica, finalmente foi declarada. Muitos Estados, porém, como Ceará (1884), já se haviam antecipado ao gesto da princesa Regente. Ao contrario da ruptura, a negociação.
A proclamação da República segue o mesmo cardápio.
– Conhecia o país um Partido Republicano, todavia sem militantes e sem presença significativa na política. Na difusão dos ideais republicanos, mais importante do que tudo (mas não mais importante do que as disputas na domesticidade dos quartéis) teria sido a influência de Benjamin Constant, republicano e positivista, sobre seus alunos na Escola militar, moldando o espírito dos jovens oficiais.Coube a todos tomar conhecimento dos sucessos do Campo de Santanana companhia do povo,isto é, pelos jornais do dia 16. Até então a movimentação das tropas era confundida com mais um desfile militar.Na verdade, o Marechal Deodoro, arrancado do leito de enfermo, saiu de casa convencido de que seus camaradas de farda o haviam convocado simplesmente para derrubar o Ministério Cotegipe. O Imperador, já muito doente, senilidade avançada, fôra trazido de seu veraneio em Petrópolis, e, na Capital,confiava tranquilizar as tropas anunciando novo Gabinete. Foi com surpresa que recebeu a notícia de que a Monarquia caíra, proclamada a República por um afilhado seu.
– –A dita ‘revolução’ de 1930 foi animada pela advertência de um dos lideres do movimento, o governador Antonio Carlos, de Minas Gerais: ‘Façamos a revolução antes que o povo a faça’. Os revolucionários, após ganharem uma guerra sem batalhas, ainda não haviam amarrado suas montarias no Obelisco da Cinelândia, no Rio, e uma Junta Militar, apressadamente oportunista, já depusera o presidente Washington Luís.
A própria ditadura do ‘Estado novo’seria um processo permanente de negociações. Ora com a cafeicultura paulista, ora com a indústria paulista, ora com a pecuária mineira, sempre com as oligarquias de um modo geral, e ao mesmo tempo acenando para os trabalhadores. É desse período a política trabalhista de Vargas.Ainda não se falava em movimento camponês. Ora acena para os integralistas, ora os reprime. Acena para o Eixo e termina mandando nossos pracinhas combater na Itália. Até nossa opção pelos aliados(é evidente que não estamos esquecendo as mobilizações populares, e os ataques de submarinos alemães em nossa costa, matando civis)dependeu em muito de famosa negociação de Getúlio Vargas com o presidente Franklin Roosevelt. Como compensação pela nossa ida para o teatro das ações,Vargas obtém um empréstimo dos EUA para financiar a construção da Companhia Siderúrgica Nacional-CSN, em Volta Redonda, RJ, ponto de partida para o processo de industrialização que se seguiria.
-Em 1945, sem traumas, a ditadura é posta ao rés-do-chão, e com ela cai o ditador poderoso, para voltar ao poder, cinco anos depois, nos braços do povo, e novamente ser deposto em 1954. Em 1955, representando as forças decaídas, é eleito o ex-governador de Minas Gerais, Juscelino Kubitscheck de Oliveira, tendo como vice João Goulart, o herdeiro de Vargas. Eleitos, Juscelino e Jango têm de enfrentar resistências à posse no Palácio do Catete.O Congresso, animado pelo apoio dos tanques do Exército, depõe dois presidentes, Café Filho, vice eleito com Vargas, e o presidente da Câmara Federal, deputado Carlos Luz, que assumira na interinidade do titular.Na Presidência, Juscelino enfrenta e derrota duas sublevações – Aragarças e Jacareacanga — e anistia os militares indisciplinados. O sucessor, Jânio Quadros, tem sua particular tentativa de golpe-de-Estado frustrada por um acordo no Congresso. Diante da reação dos militares contra a posse do vice João Goulart, e no ápice de monumental movimento de massas que exigia o cumprimento da Constituição, o presidente João Goulart concilia com as forças adversárias e, em 24 horas, o presidencialismo é substituído por um parlamentarismo de ocasião que dois anos depois seria revogado por um plebiscito antecipado graças a um acordo com o Congresso.
Em 1988, como resultado de negociação, foi possível a convocação da Assembleia Nacional Constituinte,mediante pacto firmado entre militares e civis. Um dos negociadores, em nome de Tancredo Neves, teria sido o jornalista Mário Santayana, que, com FHC, seria um dos seus redatores. Era a disciplina da transição. O teor desse documento não está revelado. Mas conhecemos algumas de suas consequências. Uma delas é o compromisso de que os termos da Anistia parcial e restrita não seriam revistos, que nenhum oficial seria punido e, finamente, que não seria convocada uma Assembléia Nacional Constituinte autônoma.
Na verdade, tivemos um arremedo de Assembléia Constituinte.Um Congresso ordinário, eleito sob a ditadura, atribui poderes constituintes ao Congresso a ser eleito nas eleições seguintes, transformando em constituintes os senadores eleitos em pleito anterior e ainda com mandato.Fruto do acordo-concordatta, nasce a nova Constituição e, como a de 1946 relativamente ao ‘Estado Novo’, a de 1988 intenta vacinar nossas instituições contra o passado recente. Uma vez mais, esta Constituição traz um pé no retrovisor e outro no acelerador, mas nenhuma Constituição constrói o futuro. A de 1988, consolida o presente, a democratização, negando o passado. O que era o passado? A ditadura. o intervencionismo militar, o antipovo, o antissocial, o antigreve, anti direitos sociais.
Diz-se que a Constituição brasileira é grande, tem muitos artigos, há quem diga que é analítica, que versa assuntos que poderiam ser deixados para a legislação complementar. Penso que o constituinte de 1988 mirou-se na ineficácia de muitos dispositivos da Constituição de 1946, inanes, vazios enquanto aguardavam por regulamentação dependente de um Legislativo sem os compromissos sociais dos constituintes. O pragmatismo, aí, dizia que o mais prudente, para além de limites sugeridos pela técnica jurídica, era aproveitar a correlação de forças do momento, e assegurar a aprovação da emenda possível no momento possível.Pois não basta a Constituição expressar a vontade constituinte mediante o texto de um artigo quando a efetividade dessa criação depende de regulamentação ordinária. Quando ela diz os trabalhadores têm tais e quais direitos‘na forma da lei’, a vigência do direito passa a depender de lei complementar à mercê de Congresso futuro.Assim, mesmo a Constituição de 1986 apresenta-se hoje com tantos dispositivos por serem regulamentados. Até lá, direitos sem vida.
Foi assim que, se aproveitando de uma correlação de forças congressual distinta daquela da Constituinte, isto é, mais reacionária, os governos Sarney, Collor e FHC lograram retirar do texto constitucional muitos de suas mais importantes inovações.
Jorn. O novo Ministro Luis Alberto Barroso….
RA – Ele é a prova que há luz no Supremo. Que há inteligência no Supremo , que o Supremo não é apenas o Ministro Gilmar Mendes, aquele que não sabe qual é a Capital da Bolívia.
Jorn – Ele deu uma entrevista à Revista Consultor Jurídico, recentemente. Ele aponta nessa entrevista que muito que foi colocado na Constituição poderia ser tratado como Lei Ordinária, porque além de inchar a Constituição, isso obrigaria os governos a fazer política com maioria qualificada, porque toda alteração na Constituição tem que ser feita com maioria qualificada. Lei complementar, não.
RA – Se, mesmo com a exigência de maioria qualificada,mexeram tanto na Constituição, pela via de emendas (PECs), imagine-se como ela estaria hoje destroçada com modificações de direitos transferidos para lei complementar.É preciso considerar que o ânimo do constituinte era preservar o direito conquistado naquele momento (da elaboração constitucional), pois não podia saber qual Congresso, do ponto de vista político-ideológico, viria a regulamentar o dispositivo constitucional. Tratava-se de aproveitar a correlação de forças favorável no momento da votação.
Jorn. A Constituição enrijeceu. Não sou eu que estou falando, são os juristas.
RA – Ela é analítica. Por que a Constituição brasileira é assim? Por todas as razões que acabei de enumerar. Trata-se de mecanismo de preservação da segurança jurídica (fundamental em qualquer democracia), em face da volatilidade das maiorias ideológicas muito à mercê do poder momentâneo do Executivo, como demonstraram os governos Sarney e FHC, e das maiorias ocasionais de um STF animado pelo vezo de legislar impunemente.Não basta o constituinte fazer incluir no texto constitucional, por exemplo, o direito de greve, se sua efetividade passa a depender da regulamentação de um Congresso futuro, que pode regulamentar limitando direitos, ou simplesmente não regulamentar, como ocorreu reativamente a dispositivos Constituição de 1946.O próprio Ministro Barroso, talvez nessa mesma entrevista, observou que todo presidente da República resolve fazer uma ‘ressalva constitucional’ para adaptar a Constituição ao seu programa. Mas isso tem que acabar. É preciso que os governantes aprendam a gostar da Constituição. É preciso avançar no que ela precisa avançar, por exemplo, ela deu um passo importantíssimo na questão da democracia representativa com o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, que, lamentavelmente, ainda aguardam regulamentação. De outro lado, precisamos abrir esse leque, para prever a revogação de mandato, legislativo ou executivo. Precisamos avançar aprofundando o processo democrático. O espírito da Constituição brasileira é democrático-participativo.
Jorn – Durante as manifestações populares em junho, falou–se muito em nova assembleia constituinte e em reforma política. Para o senhor, que alterações na constituição são primordiais para o povo brasileiro?
Primeiramente, a reforma tributária.O atual sistema tributário, de essência injusto, é instrumento da injustiça social quando cobra o imposto na ponte igualando na compra do arroz o empresário, o operário e o desempregado. Essa reforma pode, inclusive, ajudar a socorrera crise federativa brasileira, por que os Estados e os municípios estão falidos. Com a reforma tributária daríamos um passo no combate à desigualdade e teríamos a recuperação da federação. Não temos mais federação no Brasil.
A segunda questão é a reforma política. Não essa reforma eleitoral de fancaria, chamada de reforma política, sobre a qual falam políticos, partidos, e até o governo dá seus pitacos. Nem as emendinhas à legislação eleitoral que periodicamente a maioria parlamentar engendra para reacomodar interesses.A Reforma Política de que necessitamos parte da reforma da estrutura perreguinchada do Estado brasileiro, porque, quando o Estado não funciona, e ele não funciona, o prejudicado é o povo, o desassistido, as grandes camadas de brasileiros sem casa própria, sem saneamento básico, sem transporte coletivo de qualidade etc.Trata-se de uma estrutura reacionária, ineficiente quando tem de lidar com o interesse coletivo. O Estado que herdamos do neo-liberalismo foi concebido para não funcionar, pois de seu funcionamento não carece a classe dominante, que não precisa da escola pública gratuita, não precisa de saúde pública, não necessita de hospitais públicos, não necessita de transporte público gratuito e de qualidade. Herdamos um estado despreparado para a efetivação e defesa dos direitos populares, para lidar com a emergência das massas.
A Reforma do Estado neo-liberal para pô-lo a serviço do Estado nacional-popular, é o pano de fundo da reforma política no seu sentido restrito, aquele que diz respeito à profunda revisão do sistema de partidos e do regime eleitoral, que conspurca a legitimidade do voto, manipula a vontade eleitoral, desnatura a soberania popular e concorre para a desconstituição final da democracia representativa, que vive seus últimos vagidos.
A chamada democracia representativa brasileira morreu. Está morta, enterrada, sem merecer missa nem de sétimo nem de trigésimo dia. Precisamos é evitar que esse suicídio do sistema político brasileiro leve consigo a democraciatout court. E pode levar. Hoje, não há o menor liame entre o representante e o representado. Ninguém se sente representado pelo seu governante, pelo seu parlamentar. E os parlamentares não se preocupam com isso. Não há mais, hoje, uma só manifestação popular em que o Congresso não seja atacado e trata-se de uma quase unanimidade nacional apresentar os políticos como símbolos da corrupção e dos males do país. A política está sendo criminalizada, a antipolítica tomou lugar da política. E se você tira da democracia a política, o que é que fica? Essa é a reforma essencial.
O brasileiro médio de hoje não tem o menor apreço pela mais importante instituição da democracia, que é o parlamento. E por que? Uma das raízes dessa tragédia é a disfunção dos partidos. Não existe sistema partidário que resista a 32 siglas. O que é um partido senão a representação de um projeto de nação, a partir de uma comunhão de interesses?Temos 32 projetos de nação? Não, mas temos partidos para todos os gostos e negócios Tem partido cujo único papel é ser maioria, é dar sustentabilidade ao governo, qualquer que seja o governo. Qual o projeto de pais do PMDB, por exemplo?Como distinguir um do outro, cada um de nossos partidos, considerando seus projetos ideológicos, se não há diferenciações ideológicas e os programas são reduzidos a uma simples necessidade burocrático-juridica?
Qual é o projeto de Brasil em que o PMDB se sustenta? Qual é o projeto de Brasil do PROS, do Solidariedade, do PP, do PR e quejandos?Na sua grande maioria, e prestando homenagem às exceções, somos servidos por partidos de clientela, de grupos, que se constituem para obter tempo de rádio e televisão na campanha eleitoral e em seguida negociá-lo, como negociadas são as coligações, como são votados os projetos de lei, e ocupados os cargos da governança. Desgraçadamente, são, os nossos, partidos caleidoscópio:possuem todas as combinações de cores e ao mesmo tempo não têm nenhuma, pois são desservidos de ideologia.
Sem partidos, como legitimar a política?
Jorn. E a participação popular?
Há dois caminhos para aumentar a participação popular. O primeiro é os partidos se levarem a sério. Cada um que observe seu programa. Aí então a população acreditará na política. Há um meio termo entre o pragmático e o programático. Os partidos têm que se dar ao respeito.
O segundo ponto é recuperar as ruas. Estamos viciados em atuar nos gabinetes, achar que tudo se resolve por decreto, por legislação. Achar que o fundamental é arrecadar dinheiro, comprar cabos eleitorais, é a verbinha, é a verbona, é asfalto, é o ônibus, é a ambulância, é o assistencialismo que humilha o eleitor e destrói a cidadania.
O eleitor brasileiro só tem importância durante dois, três minutos;só há um momento em que todos somos iguais: naquele instante em que digitamos o número do nosso candidato. Concluído o ‘ato cívico’, retorna a desigualdade social. Todos ganham com o voto, menos o eleitor, que aos poucos se convence de que o voto não é instrumentos de mudanças políticas, muito menos serve para melhorar sua vida. É o primeiro grande passo para descrer da política, dos políticos ‘que se enriquecem a cada mandato’ e, finalmente, é sua percepção, descrer da democracia, que ‘não resolve seus problemas’. A reação de uns, a maioria, é a apatia e o estímulo a também aproveitar-se; a reação de outros, a minoria, é a revolta íntima que um dia pode terminar em rebelião.
Porque o assistencialismo, essa forma atrasada do fazer político, pervarde os partidos, devorando-os por dentro, como cupim.
O voto tem que ser obrigatório?
Claro. Senão tivesse nenhum outro argumento, bastaria um: porque a direita não gosta dele. Se o voto voluntário fosse bom para o povo brasileiro, a direita não o estaria defendendo. Por que é que a vacina é obrigatória? Isso é exercício da cidadania, como a prestação do serviço militar. A votação voluntária é para desqualificar o processo eleitoral e favorecer a corrupção e o assistencialismo, como modo de fazer com que o eleitor recalcitrante atenda ao chamamento das urnas.
O que é o voto voluntário? O objetivo do voto voluntário é tornar mais cara a eleição, e quanto mais cara a eleição pior para a democracia. Um dos problemas de nossa democracia eleitoral é o preço da campanha. Uma campanha hoje para deputado federal pode custar perto dos 10 milhões de reais, dependendo do Estado. A campanha para Presidente da República custa uma fortuna. Quando digo que o voto é voluntário, estou orientando os candidatos na compra de cabos eleitorais para tirar o eleitor da sua casa, dar cinquenta, cem reais, para ele votar. É isso que a Direita quer.
Isso não interessa à democracia. Temos que acabar com essa história de querer copiar o modelo dos outros. A Europa, por exemplo, é um modelo de fracasso.
Jorn- Quem não é?
Nós não somos. O Brasil não faz guerra. No Brasil não temos holocaustos nem campos de trabalhos forçados. Jamais praticamos a miséria que a França cometeu na Argélia. Não invadimos nossos vizinhos. Jamais tivemos campos de concentração.O Brasil é a grande civilização mestiça do mundo. Não conhecemos conflitos étnicos nem segregações raciais. Com todas as nossas dificuldades, somos a sétima potência do mundo, um dos maiores territórios do Planeta. O que temos para aprender com a violência dos EUA, ou com a Grécia e o Portugal de hoje? Ou com o colonialismo seja francês, seja inglês, seja espanhol, seja português, seja belga, seja… Que temos a copiar da falência da democracia representativa nos EUA? Com o bipartidarismo de um partido só?
Jorn – Mas somos um fracasso na questão social…
Não, não somos. Temos consciência de nossas desigualdades e estamos lutando contra elas, avançando a cada ano. Estamos fazendo o que é possível em país de capitalismo periférico. Estamos em meio ao talvez o mais importante processo de inclusão social em curso no mundo. Melhor só uma revolução socialista, preferentemente por meio do voto.
Jorn – Muitos dizem que a Constituição foi mal escrita porque permite mais de uma interpretação. Recentemente tivemos confrontos de interpretação, principalmente em relação a cassação de mandatos.
No dia em que não existirem diferentes interpretações no Direito poderemos fechar todas as escolas de Direito e os Tribunais, cuja missão, na aplicação da lei, é justamente procurar sua melhor interpretação. A função do jurista, do magistrado e do advogado é interpretar o Direito.
Mas então a Lei será aplicada com pesos diferentes porque dependerá do entendimento de cada magistrado.
Por isso existem súmulas, jurisprudências predominantes. As interpretações da lei variam com o avanço do tempo, enquanto o processo social é dinâmico, a lei está congelada. Para estabelecer a contemporaneidade entre a vida social e o direito é preciso aquecê-lo o que se obtém preferentemente com a lei, e de modo complementar pelos tribunais, em sua missão de interpretar a lei para poder aplicá-la. A interpretação é uma forma riquíssima de atualizar o Direito, de acordo com os novos usos e costumes. Eu digo o seguinte, o Direito não é, está sendo. A sociedade está permanentemente em evolução e o direito congelado.O Congresso acaba de escrever de consagrar um direito, e ele estagnou. Repito: o direito congela, e a realidade aquece, isto é no Brasil, na Bolívia, nos EUA, em toda parte. Não fosse assim, não precisaríamos nem de doutrina nem de estudos jurisprudenciais, nem de tribunais: o computador resolveria.
O senhor está flexibilizando o conceito de justiça
O conceito de justiça é matizado pela história e pela subjetividade. É igualmente um conceito ideológico. A Justiça para mim tem uma determinada representação, absolutamente diversa daquela do operário e distintas ambas, a minha e a do operário, da do patrão. A justiça para o pedestre atropelado é uma e para o motorista que avançou o sinal é outra. Ela está a serviço de uma classe,a classe dominante. A coisa mais idiota do mundo é dizer que a justiça é cega, ela não é cega. Nem deve ser.A justiça ‘cega’ julga o fraco e o poderoso do mesmo jeito. Ela deve estar sempre de olhos abertos para proteger o fraco contra o forte, embora veja sempre o direito do poderoso que oprime o pobre, e a ele se curve.Há uma frase maravilhosa de Anatole France – “O Direito em seu formalismo majestático proíbe ao mesmo tempo ao rico e ao pobre roubar pão e dormir ao relento”. A verdade da justiça é isso, a igualdade de todos perante a lei é uma farsa.
É uma questão controversa, porque envolve conceitos de moral.
Direito não tem nada a ver com moral.
Mas as pessoas acham que tem, elas confundem justiça com moral
Direito é uma regra externa imposta por uma norma coercitiva; a moral é subjetiva, é íntima. A punição no Direito é extra-homem, há uma instituição chamada Estado que aplica uma pena em nome da Sociedade. O julgamento moral produz uma pena interna, é a dor, o remorso… São valores distintos, e eles determinam os julgamentos. Meus valores são diferentes dos seus, por exemplo, porque sou marxista, e você não é. Nossas noções de moral são absolutamente distintas, mas a norma jurídica que rege meu comportamento (minha presença na sociedade) é a mesma à qual você está subordinada. A lei moral é uma faculdade, a lei jurídica é uma norma a ser obrigatoriamente observada.