por: Tarso Genro

A segunda lista de Janot, que vem sendo vazada metodicamente de forma a socializar os prejuízos dentro de toda a comunidade política – como se o “novo” fosse a comprovação de que todos os Partidos tem vínculos com financiamentos ilegais de campanha- repõe no cenário jurídico nacional, de forma enviesada, uma questão que foi alvo de grandes debates no primeiro terço século passado: quem é, de fato, o guardião da Constituição no nosso sistema jurídico? Ao divulgar sua lista, o Procurador Janot comunicou que a “democracia estava sob ameaça”, colocando a sua instituição “em guarda” e em vigilância contra esta ameaça.

A célebre conferência de Kelsen, na Associação dos Constitucionalistas Alemães, sobre “A natureza e o desenvolvimento da Justiça Constitucional” (instituída na Constituição Austríaca de 1920), trouxe as bases da concepção positivista-normativista do grande jurista -aperfeiçoada nos debates a partir de 1929- através da qual ele define quem deveria ser “o guardião” da Constituição”, polêmica já aberta na Revolução Americana por Alexander Hamilton, em 1787, defendendo que este papel caberia ao Poder Judiciário.

Kelsen (1881-1973) sustentou naquela alocução que o “guardião” da Constituição deveria ser o Poder Judiciário, através de um Tribunal Constitucional previsto no pacto constituinte, definição que teve reflexos importantes no constitucionalismo contemporâneo. Não só porque através da resposta à pergunta “quem é o guardião da Constituição?”, fica estabelecido de quem é poder de arbitragem, nos conflitos entre Poderes, em momentos normais ou de de instabilidade grave, mas também porque, dependendo da resposta dada à referida pergunta, sobre o “guardião”, escolhe-se dar mais, ou menos força normativa, às previsões constitucionais para superar as crises agudas de Estado.

O debate sobre este tema tomou vulto com a contraposição feita a Kelsen, pelo jurista Carl Schmitt (1888-1985), num escrito igualmente célebre -“O Guardião da Constituição”- pelo qual ele recusa a possibilidade de tal “justiça constitucional”. Para Schmitt, este seria um Tribunal que obrigaria o Poder Judiciário a “fazer política”, portanto deformando-o no exercício do que seriam as suas funções jurídicas, compatíveis com o cotidiano da vida estatal, nos momentos de “normalidade”: “a política não teria nada a ganhar” com isso e a “justiça teria tudo a perder”, segundo ele.

De acordo com Schmitt, um Tribunal -ou seja, uma instituição do Poder Judiciário- não seria a instituição apta para solucionar crises políticas que abalassem os fundamentos políticos do Estado, postos na Constituição, o que lhe permitia inferir que aquele -o “guardião”- deveria ser um órgão político que se fizesse, quando necessário, livre de toda a normatividade, para poder salvá-la. Só assim, com essa liberdade, este órgão terá capacidade para, nas eventuais situações de crise, assegurar a real “unidade do Estado” expressa numa Constituição, assegurada por uma concreta “decisão constituinte”.[1]

O que estaria em jogo nestas circunstância seria a própria Constituição, ou seja a unidade e a existência do Estado, o que demandaria, segundo Schmitt, uma decisão política de “exceção”, para que o Estado sobrevivesse. Quem deve guardar a Constituição, dizia o autor (que se notabilizaria como defensor do Executivo de Hitler) é quem detém a capacidade de “decidir sobre a exceção”, situação-limite que exige o exercício (a decisão) mais potente do poder soberano, diretamente através do Poder Executivo.

Como se vê, as conclusões dos autores, embora ambos informados filosoficamente pelo positivismo, são originárias de avaliações diferentes sobre a capacidade normativa da Constituição, com consequências distintas: o primeiro (Kelsen) faz-se construtor teórico de uma concepção “positivista-normativista” de corte lógico-analítico que “confia” na norma; e o segundo (Schmitt) apresenta-se como defensor de uma concepção “decisionista-unitária”, mais próxima de um positivismo vulgar, que descarta ou não, a norma, a partir do que o Executivo -o Chefe de Estado- julga ser necessário para debelar a crise e voltar à “normalidade”.

Na verdade, as posições de Kelsen e Schmitt não se separam em função de divergências sobre o conceito do “político”, já que tanto o Judiciário, como o Executivo, podem promover e exercer a “exceção”, em momentos críticos, através da sua força política, tornando-se nos casos respectivos -ambos- bons ou maus “guardiões” da Constituição. A primeira posição aposta que as formas jurídicas instituídas são apropriadas para garantir o fluxo político do constituinte democrático; a segunda sustenta que é a “decisão” política do Chefe de Estado -como exercício político livre de toda a norma- que permite ao poder soberano ser capaz de manter os fundamentos materiais do Estado.

O Poder Judiciário, quando faz a “guarda” da Constituição, na verdade apenas expande as suas funções políticas, originárias do constitucionalismo moderno, que já estão inseridas reiteradamente -por exemplo- na sua capacidade de decidir questões atinentes à ordem econômica, ao planejamento e aos direitos sociais, questões sempre altamente políticas e politizadas. Dizer, portanto, como faz Schmitt, que o Tribunal Constitucional pode tornar-se um ente político, por “guardar” a Constituição (e que o direito “perde” com isso) é apenas um juízo de valor, que sequer pode ser aceito como péssimo dogma originário da “ciência” do Direito.

A intervenção do Estado, no quadro das relações entre o público e o privado, é uma intervenção “política” de alto nível, que não é estranha ao Poder Judiciário, em qualquer período constitucional. Aquela que relativiza ou “flexibiliza” o direito de propriedade, é um exemplo flagrante: “Em boa hora o Supremo Tribunal Federal, ao dirimir conflito entre usineiro, proprietário de lavoura canavieira, e o extinto IAA – Instituto do Açúcar e do Álcool – cujo, objeto versa a concessão, a título gratuito, de área de terra de dimensões mínimas, para a plantação e criação, próxima à moradia do trabalhador com mais de um ano de serviço, avança entendimento de ampla repercussão. (Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n° 96.444-RJ., Rel. Ministro Djaci Falcão.Revista Trimestral de Jurisprudência, Brasília, v.111, p.1145-1152,mar.1985.)” [2]

É evidente que dentro da ordem constitucional de uma sociedade capitalista, seja ela social-democrata, liberal ou neoliberal, à medida que existe uma disputa, em cada decisão de estado, entre o que é mais “técnico” ou formalmente “neutro”, e o que é mais “social”, ou “materialmente comprometido” com o constitucionalismo social, as decisões do Executivo, os julgamentos dos Tribunais e a produção das Leis, sempre se baseiam em enunciados políticos, para fundar a sua legitimação. Quanto ao planejamento, as experiências não são diferentes: “Muitas foram as experiências planificadoras que resultaram frustradas, provando, como registrou Ernesto Benda, serem ingênuas as crenças acríticas nas capacidades superiores do Estado – o que não chegou a impedir a fixação do entendimento contemporâneo, pela correção da subordinação jurídica do econômico ao político.[3]

O que ocorre de estranho, na verdade, em nosso país, é o seguinte: como o nosso Tribunal Constitucional tem falado de forma fragmentada e não raro “partidarizada”, através de uma boa parte de seus pares como combatentes políticos, as decisões colegiadas do STF como instituição “guardiã” -, apontada na Constituição- estão ficando em segundo plano, cedendo aos “furos” da exceção, que atacam a Constituição pelos flancos. O ilustre Procurador Janot tem uma noção peculiar de que a “ameaça” à democracia, neste momento, vem só da “corrupção”, como se houvesse democracia sem corrupção e a corrupção só vicejasse na democracia. Se isso fosse verdade, a “exceção” estaria justificada.

A verdade, porém, é outra. Os países que venceram a corrupção sistêmica no Estado o fizeram dentro da luz plena do Estado de Direito. A democracia é ameaçada pela corrupção com a mesma intensidade que é ameaçada pelos métodos de “exceção”, que só fazem aumentar o percentual de corruptos que dirigem os Governos. O Ministério Público -ao invés do Tribunal Constitucional- está se tornando, com esta visão manipulatória da crise, tanto o “guardião” de fato da Constituição, como o centro político “decisionista”, num Estado de Direito que ao cansar as suas regras pela inércia, também forma cidadãos que esperam um “führer”, que aja e pense por eles. Fora da democracia.

[1] Perspectivas do direito no início do século XXI Revista). Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 115 – 116.
[2] MUYLAERT, Sérgio Ribeiro – Estado Empresa Pública Mercado :Um estudo aproximativo para a efetivação da política econômica comum de integração no Cone Sul).Porto Alegre:Sérgio Antônio Fabris Editor,1999.p.279
[3] SCOTT, Paulo Henrique Rocha – Direito Constitucional Econômico: Estado e normalização da economia. Porto Alegre:Sérgio Antônio Fabris Editor,2000.p.138