Nossa crise exige das esquerdas brasileiras o patrocínio e a liderança de um imenso movimento de massa com o objetivo de enfrentar a ascensão conservadora.
Como se houvéssemos descoberto a pólvora, políticos, analistas, a academia – e as ruas – descobrem a existência, entre nós, de uma articulação conservadora de nítida atração pelo pensamento e pela ação de direita, em termos até então ignorados, ignorados desde os tristes idos de 1963/64. Como nada no mundo, esse fenômeno não é obra nem de Deus nem do diabo.
O avanço, igualmente orgânico e ideológico, da direita, decorre, fundamentalmente, da crise do pensamento e da ação de esquerda. Fenômeno comum à Europa ocidental, chega até nós com anos de atraso, desmentindo a ilusão de que a América Latina seria eternamente uma ilha (do ponto de vista político) progressista, contrastando com o avanço das forças conservadores no velho mundo. Lá, a crise da política em geral trouxe consigo a crise da socialdemocracia (que transitou para a direita) exatamente e estranhamente no momento em que o fracasso do neoliberalismo impõe a recessão econômica e seu filho dileto, o desemprego.
Já antes, ainda atingidos pelos escombros do Muro de Berlim (pesou a carga simbólica) ruíram os partidos comunistas, a começar pelo grande partido de massas que era o PCI de Gramsci e Togliatti. O fracasso dos comunistas e socialdemocratas abriu espaço para a emergência e avanço de figuras que transitam do burlesco ao trágico, como simbolizam Berlusconi, Sarkozy e Marie Le Pen, ao lado do conservadorismo de Cameron e Angela Merkel, cujas lideranças foram recentemente confirmadas nas urnas. Aqui o quadro é similar, com o Partido Comunista Brasileiro transformando-se em sua contrafação, o PPS, e o PSDB renunciando à socialdemocracia para transformar-se naquilo que o DEM não conseguira: ser o primeiro grande partido da direita brasileira. As eleições de 2014 já se realizaram sob esse signo.
A crise da esquerda brasileira, assim, não é nova, nem nasceu com a crise do PT de hoje, que apenas a agudizou. Após 40 anos de ascensão continuada e conquistas eleitorais (dentre as quais por quatro vezes seguidas conquistando a Presidência da República) o campo da esquerda (onde, evidentemente, nem todo mundo é de esquerda) se vê ameaçado de ceder posições. Depois de 1974, com a vitória eleitoral do MDB que começou a desestabilizar a ditadura, seguiram-se a luta pela Anistia, a campanha pelas Diretas-Já e, culminância, a derrota da ditadura no colégio eleitoral. Nesses momentos, forças progressistas, liderando setores liberais avançados, empurraram a direita para trás. Quando se inicia o quarto período de governo de centro-esquerda, a reversão desse processo é inquietante.
Antes, as esquerdas brasileiras, assim mesmo no plural, esquecidas do dever da reflexão, haviam seguido acriticamente o comando do PT, o partido hegemônico do campo, que, a partir de 2002, optara pelo pragmatismo eleitoral que levaria todos à vitória eleitoral. No governo, porém, essas forças, despreparadas do ponto de vista ideológico, cobrariam a abdicação de certos princípios programáticos, e as forças destinadas historicamente à renovação terminaram por adotar como suas as práticas conservadoras sempre rejeitadas pela esquerda. A crise de valores foi fatal e suas consequências são de domínio público.
A reflexão sem prática é inócua, dizem os ativistas (em férias), esquecidos de que a práxis sem reflexão leva ora à ‘doença infantil do esquerdismo’, ora ao voluntarismo, ora, como agora, à anomia. As esquerdas também erraram quando não se prepararam para exercer um governo de centro-esquerda em país capitalista, de formação autoritária, sabidamente conservador. E, por haver perdido o hábito da reflexão, não compreenderam a realidade na qual foram chamadas a atuar, braços dados com uma base parlamentar conservadora. E, desconhecendo a realidade, ficaram sem condições de estabelecer sua própria estratégia. Condenaram-se, assim, a ser governadas pelo adversário.
Despreparados estrategicamente, PT e seus aliados governaram segundo o modelo tradicional-conservador. Diante da emergência reacionária, os partidos estão hoje atônitos, sem resposta política, sem formulação, sem ação. Não falam e não agem, por não saberem o que dizer e o que fazer, após haverem, coletivamente, renunciado ao enfrentamento ideológico.
Cabe ao PT, após a autocrítica que ainda não fez, não só proceder à (auto)revisão (política, ideológica e orgânica), mas, fundamentalmente e de forma urgente, construir uma estratégia de ação, e construir um programa que fale ao Brasil de hoje. Mas esse ‘programa’ não pode ser um mero discurso: a sociedade aguarda atos e fatos. Trata-se de refundar-se, no que esta expressão encerra de mais radical. No caso das esquerdas, o imperativo é a revisão de nossos paradigmas, rever-se política e ideologicamente, rever-se do ponto de vista orgânico, rever a práxis. Voltar a pensar e formular. Precisamos voltar a falar com o povo, os trabalhadores e os estudantes. Ter discurso e atos audíveis e visíveis não apenas pelos nossos militantes. É preciso romper o casulo para o qual refluímos.
A análise da crise só se consolida se enseja uma alternativa
A forças populares, no Brasil e no mundo, têm a tradição dos movimentos de frente política, com fins eleitorais ou não. Foi uma frente popular, integrada por trabalhadores, estudantes, intelectuais e militares, que fez no Brasil a vitoriosa luta pelo ‘petróleo é nosso’. Foi uma frente democrática, unindo esquerda e liberais, que derrubou o ‘Estado Novo’. Foi a frente política de todos os adversários da ditadura que nos legou a redemocratização.
Nossa crise – da democracia representativa, do presidencialismo como tal e do presidencialismo de coalizão de forma específica, crise da democracia ameaçada, crise da institucionalidade em face das seguidas ameaças ao pronunciamento da soberania popular em 2014 – exige das esquerdas brasileiras o patrocínio e a liderança de um imenso movimento de massa com o objetivo de enfrentar a ascensão conservadora e promover reformas políticas profundas, que nossos governos não tiveram forças para sequer intentar, e por isso mesmo o Estado de hoje é o mesmo de 2002 e a coalizão de forças permanece adversa.
Essa grande mobilização exige a formação de uma Frente, não só de partidos, mas, nucleadas ou não por partidos, seja fundamentalmente um frente popular, nascida das organizações de massa da sociedade civil, e nacional porque uma vez mais se coloca como prioridade a defesa do país. Precisamos de uma frente nacional popular, na qual os partidos do campo da esquerda terão acolhimento, mas lado a lado do movimento social, dos sindicatos e dos trabalhadores e assalariados de um modo geral, do movimento estudantil, de políticos com ou sem vinculação partidária, de intelectuais e pensadores, de liberais e democratas progressistas, de todos aqueles que, enfim, entendam como chegada a hora de lutar: 1) pela democracia no seu significado mais amplo, nele entendida como peça destacada a democracia dos meios de comunicação; 2) pela defesa da soberania nacional como pilar de qualquer programa politico; 3) pelo fim de todas as desigualdades e discriminações; 4) pela defesa e aprofundamento dos direitos dos trabalhadores e assalariados de um modo geral; e, corolário, 4) lutar pela retomada do desenvolvimento com distribuição de renda.
Resta-nos a esperança de que se firmem reações, como o Podemos espanhol e o vitorioso Syriza grego, mas se impõe lutar firmemente para que seus influxos cheguem até nós.
Roberto Amaral
*Escritor, cientista politico, ex-ministro de Ciência e Tecnologia
Fonte: Carta Maior