É evidente a existência de uma crise atingindo o governo, que pode transbordar da política para o conflito social

Dilma Rousseff em sua posse: o governo está imóvel

Dilma Rousseff em sua posse: o governo está imóvel

Finalmente posta à luz pelo ministro Teori Zavascki a aguardada Lista de Janot (cujo selecionado vazamento tanto e justamente incomodou os catões da República), revelou-se segredo de polichinelo, ao trazer à ribalta os personagens de sempre, a começar pelos inefáveis presidentes da Câmara e do Senado Federal, antigos companheiros de aventuras de PC Farias e Fernando Collor de Mello, cuja história de desacertos éticos ainda está em andamento. O ex-presidente está na lista dos que serão investigados pelo STF. Os demais – fora a luzidia lista de governadores e ex-governadores e ex-governadora – vêm do poderoso (e perigoso) ‘baixo clero’, típico de todas as casas legislativas, mas já é o bastante para relativizar o poder investigatório de uma CPI desde sua origem fragilizada politicamente, ao abrigar em sua composição deputados beneficiários de ‘doações’ de campanha das empreiteiras que deverão investigar.

(Por acaso – acaso? –, nenhum nome de empreiteira ou empresário consta da lista de convidados para depor na CPI).

Até aqui, o que sabemos é o que nos diz a imprensa, que ativamente participou das investigações e está dando sua habitual contribuição para o julgamento popular que antecederá o julgamento do STF. Quero dizer que minhas observações são impressionistas, por desconhecer as provas e a fundamentação jurídico-fatual das acusações.

De qualquer forma, a bomba finalmente explodiu (pelo menos nas manchetes), para alívio de uns e insônia de outros, mas os estragos, até aqui, foram bem mais modestos do que aqueles previstos ou desejados pela crônica política, ávida por um terremoto capaz de abalar os alicerces do Palácio do Planalto. O qual, com lista ou sem lista, permanece como o alvo cativo de todos os arqueiros, mesmo dos amadores.

É disto que se trata.

Nada, porém, afasta ou minimiza a existência de erros imperdoáveis na administração da Petrobras, reverberados, porém, como instrumento para promover a desestabilização do governo, ao fim e ao cabo o objetivo de parcela considerável da classe dominante.

Sobre o que possa ser a realidade – e uma vez mais ela é menos importante do que sua versão – é evidente a existência de uma crise política atingindo o governo já nos seus primeiros dois meses de exercício, imobilizando-o, enquanto mobiliza partidos, bancadas parlamentares, sindicatos e setores organizados e desorganizados da sociedade civil, todos a reboque da grande imprensa, senhora de baraço e cutelo da política brasileira de nossos dias.

No próximo dia 13 de março, sindicalistas e petroleiros prometem abraçar a Petrobras, ameaçada de pagar a conta do assalto perpetrado por uma súcia de empresários, executivos desonestos e políticos de segundo quilate. E no dia 15 a direita brasileira, finalmente assumida como tal, isto é, como reacionária e golpista, ameaça ir às ruas para pedir o impeachment da presidente Dilma.

A presidente falou à nação no domingo 8, defendeu sua política, mas parece que não agradou aos principais beneficiários dos ajustes-reajustes, pois, diz a imprensa (diz sua versão dos fatos e a ela me atenho), sua fala foi recebida com panelaços nos bairros nobres do Rio de Janeiro (destaque para Ipanema e Barra da Tijuca), São Paulo (destaque para os Jardins), Belo Horizonte (Lourdes) e Brasília (o Correio Braziliense destaca Águas Claras bairro-cidadela de classe-média). Também não agradou aos empresários paulistas. Fez seu teste. Falta, tão-só, falar ao povo.

São os idos de março, antes dos idos de junho e do aziago agosto. Há uma crise e ela está sendo cevada de forma irresponsável, tendente a levar o País a um impasse institucional que pode transbordar da política para o conflito social. Aos semeadores de ventos recomenda-se conhecer as tempestades passadas.

Até aqui a ameaça de um impasse institucional vinha sendo açulada pelo avanço político e eleitoral de forças assumidamente de direita, partidárias e não partidárias, mediáticas em sua liderança, aliadas a setores irresponsáveis do capitalismo moderno (leia-se Avenida Paulista), unindo o capital financeiro nacional e internacional (este como sempre liderando aquele) ao que há de mais atrasado na política brasileira: o fisiologismo, o fundamentalismo religioso de raiz pentecostal-televisiva, a corrupção larvar pondo no mesmo balaio (como sempre), executivos inescrupulosos e políticos ávidos por ‘contribuições’ via ‘caixa-dois’ para suas campanhas eleitorais. Esse ajuntamento golpista é coordenado política e ideologicamente pela grande imprensa brasileira, que desempenha, hoje, entre nós, o mesmo papel desestabilizador – da economia, da política e do governo – levado a cabo em 1954 e nos idos de 1963/64, com as sabidas consequências.

Os fatos de importância histórica, lembrava Marx escrevendo sobre texto de Hegel, ocorrem, por assim dizer, duas vezes; a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.

Vivemos, presentemente, o chamado ‘terceiro turno’, inovação brasileiríssima como a jabuticaba, denotativa porém do desapreço que as forças de direita (que antes recitavam o catecismo liberal) nutrem pelos princípios da democracia representativa, fundada no respeito ao pronunciamento da soberania popular, expressa mediante o voto. O desrespeito a tal princípio, como tudo na História, tem seu preço.

A algaravia – nos jornais ou nas ruas ou nas janelas – tem um só objetivo, qual seja o de deslegitimar, para daí desconstituir, o mandato conquistado em pleito de lisura incontestável. A crise – é apenas um pretexto, grave, ponderável, mas sempre apenas um pretexto. Vencido o especioso pedido de recontagem dos votos, a direita apela, sem pejo, para o impedimento; vencido mais este obstáculo – que a sociedade haverá de rejeitar –, a segunda fase do mesmo projeto será impedir a afirmação do governo Dilma. Nessa hipótese, a governante permaneceria no posto, mas jungida, amarrada, contida por um Congresso adverso, por uma maioria parlamentar-partidária adversa, por uma imprensa unanimemente adversa, por uma classe dominante inimiga do progresso social que esse governo representa, por um poder econômico incompatibilizado com qualquer projeto de desenvolvimento nacional autônomo (de que a desconstituição da Petrobras, vetor do desenvolvimento industrial-tecnológico do pais, é apenas o movimento de um peão no tabuleiro de xadrez). Não são poucos nem irrelevantes os adversários.

Qualquer que seja a análise, quaisquer que sejam as projeções, o consensual é o reconhecimento da crise. Crise econômica e crise politica, aqui como vasos comunicantes que se autoalimentam; mas igualmente crise de valores e crise de liderança, crise de fim de ciclo que produz o vácuo, e, em nosso caso, o mais grave de todos, o vácuo de lideranças. A política está em crise, e nada mais diz ao povo, como não falam mais ao povo os partidos, sem ideologia, sem visão programática, valhacoutos de interesses pessoais menores. Está em crise o Judiciário, que não julga e não promove a Justiça e se deixa confundir com juízes que se transformam em depositários infiéis dos bens tomados em sua guarda. A imprensa, transformada em Poder da República, é um comércio que descarta a lisura. Por fim, um Congresso do qual está ausente a alma do povo e certamente vivendo sua pior e mais grave crise moral, desde a Constituinte de 1824.

Os fados, que nem os deuses governam, podem mudar o roteiro dos fatos projetados pelos homens e, assim, é possível trabalhar com uma reversão de expectativas na medida em que a lista do Lava Jato, anunciada como a pá de cal do governo, tenha transferido a crise, principalmente em seus aspectos políticos e éticos, para o Congresso. Mas, fundamentalmente, na medida em que o PT se recupere de seu colapso, que arrasta consigo a anomia do que ainda se chama entre nós de partidos ou organizações, senão de esquerda, pelo menos progressistas. Só a mobilização popular sem cachê pode afastar o golpe adrede preparado: a sangria do governo Dilma sob o controle de seus algozes, como aliás anunciou em sua coluna na FSP (9/3) o afoito senador Aécio Neves. E teve apoio entre os seus. “Quero sangrar a presidente”, endossaria, em encontro no instituto paulistano de FFHH, o sr. Aloysio Nunes Ferreira, também tucano e senador – com a delicadeza de fazê-lo em meio às celebrações do Dia Internacional da Mulher e da promulgação da Lei do Feminicídio. Também conhecido como ‘Ceguinho’, apelido ganho nos seus tempos de desajeitado motorista de Carlos Marighella, o senador Nunes Ferreira é hoje orgulhoso sucessor do delegado Romeu Tuma como representante de São Paulo no Senado Federal. Para alguns, quiçá, uma trajetória ascendente.

Roberto Amaral