Faz dias, O Globo, em nota editorial (“Equívoco”, 16/5/2019), apontou-me, uma vez mais, como defensor da fabricação, pelo Brasil, da bomba atômica, artefato expressamente proibido pela Constituição Federal (Art. 21, XXIII), pioneirismo no qual, aliás, não tivemos seguidores. Esta falsa acusação foi renovada na edição de domingo último (9/6 p.11), em uma coluna de potins. Talvez seja a oportunidade de esclarecer os leitores deste  jornal.

Advirto novamente: não propus nem defendo a fabricação de tal artefato.

Momentos após tomar posse no cargo de Ministro da Ciência e Tecnologia, no recém instalado governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, dei uma longa entrevista a repórter da BBC de Londres, na qual discorri sobre nosso programa de governo, anunciando meu compromisso (entre muitas outras metas) de assegurar a mais absoluta liberdade de pesquisa dos cientistas brasileiros — algo que parecia óbvio em um governo democrático, mas que hoje está sob séria ameaça.

Naquelas circunstâncias, os olhos do mundo se voltavam para o novo governo brasileiro, instigados pelo ineditismo da vitória eleitoral de uma coligação de centro-esquerda e, sobretudo, pela figura carismática do presidente. Todos se perguntavam sobre o que se passaria no Brasil. Jornalistas da imprensa conservadora catavam alguma frase, algum gesto capaz de levantar suspeitas.

Instado pelo repórter se a liberdade que eu proclamava chegava ao limite da pesquisa da fissão nuclear em todos os seus aspectos, reafirmei a política de ampla liberdade da ciência.

De uma longa entrevista sobre filosofia da ciência no Brasil e o programa de governo, extraiu-se um pequeno trecho, e a garantia da liberdade de pesquisa foi transformada em defesa da bomba atômica, o que revela o encontro da má-fé com a ignorância, por uma razão muito simples:  a tecnologia da bomba de fissão nuclear havia muito deixara de ser segredo. Os centros de pesquisa sobre energia nuclear, incluindo os brasileiros, não a ignoram e, por isso mesmo,  ela era e é objeto de dissertações de mestrado e doutorado.

Neste sentido, por exemplo, vale citar a obra A física dos explosivos nucleares (Ed. Livraria da Física, São Paulo, 2009), de Dalton Ellery Girão Barroso, autor, também, de “Simulação numérica de detonações termonucleares em meios híbridos de fissão-fusão implodidos pela radiação”, tese de doutorado apresentada e aprovada no Instituto Militar de Engenharia (2006).

O segredo de polichinelo está, disponível, inclusive, na Internet. Basta usar uma ferramenta de busca para desvendá-lo. Por que, então,  a algaravia em torno de minha declaração de janeiro de 2003 sobre a liberdade de pesquisa do cientista brasileiro?

Fica a pergunta.

Entre os extremos, o desenvolvimento da tecnologia nuclear abre o mais amplo campo para seu emprego em fins pacíficos, a começar pela Medicina, o que desvela o óbvio: não se podem estabelecer limites ao conhecimento. Cuide a política, como cuida o Brasil, de sua aplicação.

Nenhum país do mundo, a não ser aquele idealizado pelos hoje feitores da política cientifico-tecnológica brasileira, pode renunciar ao conhecimento, e aqui volto a empregá-lo no seu sentido o mais amplo possível, compreendendo desde a pesquisa pura ou aplicada no campo das chamadas ciências exatas, à especulação filosófica que tanto incomoda o atual ministro da Educação.

Não se auto-impuseram limites os EUA, e isso é o que explica sua grandeza material, como explica o desenvolvimento da União Europeia, da China e do Japão.

A pesquisa abre horizontes inimaginados em seu projeto original; no fazer-se ganha vida própria e leva o pesquisador a percorrer sendas impensadas e atingir objetivos insuspeitados. Muitas vezes, o cientista encontra indicações para perguntas ainda não formuladas. Por isso ela tem que ser livre.

O que complica o entendimento dos que só veem as aparências é que o conhecimento científico é dual, como  quase todo conhecimento, pois, sendo sempre útil na paz e na vida civil, pode igualmente transformar-se em instrumento de guerra.

O espírito rasteiro faz tábula rasa entre possuir um conhecimento teórico e ter a capacidade tecnológica e a decisão (política) de aplicá-lo. O fato de o Brasil ter capacidade de enriquecer urânio em até 19,9%, não significa que podemos e queremos enriquecê-lo a mais de 90%, percentual necessário para a construção de um artefato nuclear.

Esta questão – dos usos do conhecimento – salta da ciência para ingressar no campo da política e da ética. O Brasil que domina a energia nuclear deve recusar-se ao seu uso bélico por decisão própria, não por ignorância ou sob o peso de veto externo, mas porque, podendo dizer sim, diz não (relembro a ordem constitucional que limita a fins civis o emprego da fissão), no espírito que seria consagrado pela Estratégia Nacional de Defesa (Decreto nº 6.703, de 18/12/2008. Introdução, I). E vale-se do seu conhecimento para o máximo aproveitamento em seus destinos pacíficos, pondo a serviço da civilização e da vida o que poderia ser instrumento de morte.

Os interessados em manter o atraso científico no Brasil encontrarão sempre argumentos para limitar a liberdade do pesquisador e a autonomia das instituições científicas.

Vivemos em cenário de ataques à produção do saber científico e tecnológico no Brasil. O regressismo quer nos conduzir ao tempo colonial. A mentalidade conservadora da elite brasileira tem apoiado, às vezes por omissão, essa proposição absurda.

A insistência em caracterizar um ex-ministro da Ciência e Tecnologia de um governo que expandiu a produção de conhecimento no Brasil como defensor da bomba atômica não é inocente e por isso mesmo não deixa de favorecer os que tentam anular as possibilidades de desenvolvimento do país.

* A pergunta que não pode calar: quem mandou matar Marielle?