Nenhum fato histórico pode ser compreendido, solidamente, quando analisado como  fenômeno apartado do entrecho histórico-social no qual se criou.  A história é como uma corrente: a soma dos elos é que lhe dá significado.

A crise dos nos 20/30 do século passado, na Europa,  deixou como rasto o totalitarismo nazifascista cujo trágico legado foi   a II Guerra Mundial; a lufada democrático-social que a ela se seguiu (e que no Brasil detonou o Estado Novo), foi devorada pela Guerra Fria, o outro lado da disputa entre o capitalismo (leia-se imperialismo) e os avanços do Estado soviético. Renovada com outros atores, ela anuncia o conflito de nosso tempo,  a disputa de vida e de morte  entre os   EUA, no afã  salvar sua hegemonia de quase um século,   e a emergência da China, construindo pacientemente uma nova hegemonia.

O 1º de abril de 1964, cujas raízes objetivas e ideológicas remontam  à deposição de Vargas em 1954,  não deve ser visto nem como ponto de partida, pois percorria caminhos desbravados por outras conspirações que suas vítimas não ousaram ver em seu tempo,  nem muito menos como ponto de chegada, pois a doutrina e a visão de mundo que o inspiraram foram preservadas até aqui, e tomam corpo na atual experiência de regime militar de novo tipo, pela vez primeira ungido pelo processo eleitoral.

Em 1964, como nos demais episódios em que desempenharam papel de sujeito, as forças armadas partilharam a hegemonia com diversos outros atores, como os agentes econômicos, sujeitos ativos na implantação e sustentação do novo regime.

Essa aliança civil-militar, de cúpula, foi reproduzida na sociedade, em 2018, como em 1954 e em 1964, quando conquistou setores majoritários da classe média e das grandes massas urbanas, assustadas com a violência, e ideologicamente sempre sensível às denúncias de corrupção na política e no Estado. O apoio popular, decisivo, liberador das intervenções, está na origem de inumeráveis regimes totalitários, a começar pelos mais conspícuos, o fascismo italiano e o nazismo alemão, não por acaso catapultados por processos eleitorais formalmente legítimos.

Uma velha lição ensina a necessidade de conjunção entre fatores subjetivos e objetivos, do concreto palpável  ao simbólico. Neste sentido é preciso admitir que o bolsonarismo  expressa o predomínio de uma subjetividade coletiva autoritária, sempre pronta para emergir.

Não se trata de fenômeno inusitado, pois nos chega no rasto de nossa formação histórica pontilhada por um autoritarismo larvar alimentado por uma civilização fundada no escravismo e no genocídio indígena, e sustentada numa imoral desigualdade social, a serviço dos donos do poder, uma exígua classe dominante que, do extrativismo colonial à indústria capitalista, vem escrevendo a história do Império e da República, de costas para os interesses do país, alheia à nação e a seu povo.

Stefan Zweig, em sua  autobiografia (O mundo de hoje, Zahar),  traz à tona o papel decisivo desempenhado pela grande indústria alemã na ascensão de Hitler e do nazismo. O Füher prometia proteger ao mesmo tempo o grande empresariado e a pequena-burguesia empobrecida da ameaça dos comunistas e, de sobra, acenava com emprego para  as massas operárias apenadas pela crise econômica. Os militares, escreve ele,  foram atraídos porque Hitler lhes prometia a glória e o poder,  pensava em termos militaristas e atacava o pacifismo e, é de se lembrar,  a ameaça comunista.

Hoje, sem qualquer apego aos fatos, e sem pejo, o novo regime diz nos haver salvado do socialismo e do que identifica como “marxismo cultural”.

A reação moralista da classe média, que  já havia sido o fio condutor das campanhas e das conjurações contra Getúlio Vargas, João Goulart e Juscelino Kubitscheck, e seria o fermento da campanha do capitão, como anteriormente fôra a matéria prima da construção de Jânio Quadros e de Fernando Collor. O primeiro prometia varrer a corrupção; o segundo, caçar os ‘marajás’ do serviço público. Ninguém cumpriu suas promessas, e o ex-governador de Alagoas terminou afastado da Presidência acusado de corrupção.

Tanto na Itália quanto na Alemanha, porém,  a caminhada do fascismo e do nazismo ao poder foi pavimentada por comunistas e socialdemocratas. Na Alemanha os comunistas, que, a despeito do cenário político,  haviam eleito os socialdemocratas como seus inimigos de morte, confiavam que Hitler os esmagaria deixando livre e asfaltada a estrada que levaria o proletariado ao  poder. Na Itália, os socialdemocratas apostavam que o fascismo esmagaria o movimento comunista, abrindo-lhes assim  o caminho que levava ao poder.  

No Brasil, o partido que se oferecia como porta-voz da socialdemocracia elegeu como inimigas aquelas forças que poderiam ser seus aliados ideológicos, a saber, o trabalhismo e o lulismo. No governo, o PSDB optou por compor  com os partidos de direita derrotados pela redemocratização, pela qual, aliás, havia  lutado; no governo, o PT elegeu como adversária a promessa de socialdemocracia. Para o petismo, Getúlio Vargas era apenas um ditador; sua CLT, uma tradução da Carta del lavoro de Mussolini. O leitmotiv de Fernando Henrique Cardoso era acabar com ‘a era Vargas’, sonho que a direita persegue desde 1945.

Os liberais brasileiros e o centro se aliaram à extrema-direita na resistência aos avanços sociais encetados  pelos governos do PT, e recolheram como sanção histórica seu virtual desaparecimento como força política.

Não obstante as seguidas lições da História, raramente os povos retiram dela aqueles aprendizados que, se observados, poupariam crise e desgraça.

Não foram poucos os povos que só conseguiram sentir e ver o terremoto quando não havia mais condições de evitá-lo. Pagaram altíssimo preço humano.

 As sociedades italiana e alemã das primeira décadas do século passado se viram, no ápice do totalitarismo, divididas tão profundamente quanto uma maçã cortada ao meio; de um lado a multidão ululante, uníssona, hipnotizada pelo grande condutor, ora o Duce, ora o Füher, pedindo guerra e violência, realizando seus pogroms e sua razia contra judeus e comunistas, transformando adversários em inimigos e condenando estes à morte; de outro lado, a outra metade, inerte, surda e cega recusando-se a ouvir e ver uma realidade, que, para proteger-se, negava.

Presentemente, sem cogitar de comparações, muitos observadores da cena politica brasileira, na Academia e no jornalismo (‘Salve-se quem puder’, Mino Carta) revelam-se incomodados diante de um Brasil que veem passivo, silente, acocorado, ignorante da realidade, impassível diante da crise que desorganiza a vida social, põe em risco a própria nacionalidade, desconstitui direitos, ameaça mesmo a integridade do país.

Muitos alemães se recusaram a ver, para além dos crimes de guerra,  as atrocidades que se cometiam a seus olhos, nas suas cidades, junto de suas casas e das escolas de seus filhos, e muitas das vítimas do nazismo nutriram até o último momento a vã esperança da sobrevivência, ora simplesmente negando a ameaça que pairava sobre suas cabeças, ora se protegendo na suposta convicção  de que a tragédia só ocorre com o outro.

No Brasil, em nome do combate ao comunismo, e pretensamente em defesa da democracia falsamente ameaçada, as marchas “da família com Deus pela liberdade”, dando forma aos apelos da grande imprensa, ofereceram o substrato subjetivo (o apelo popular) de que as forças armadas e seus associados  necessitavam para afinal implantar a ditadura que em 1964 rasgou a Constituição e impôs a repressão, as prisões, os assassinatos, as cassações, restringiu as liberdades, impôs a censura, fechou o Congresso e instalou  o terrorismo cultural.

Ainda hoje há bons brasileiros que não acreditam nos crimes de tortura e assassinato promovidos pelos militares brasileiros.

Quem espera acontecer para então ver o que sua vista não alcança, está condenado à tragédia.

Roberto Amaral