O governo já disse a que veio e ninguém pode alegar surpresa: a insanidade foi anunciada na campanha. A direita, desconsolada pelos insucessos dos governos Jânio e Collor, demagogos tomados de empréstimo, respectivamente,  à UDN e às Organizações Globo, entrou na raia com o capitão Messias que já vinha a galope, embalado pela caserna e as clássicas forças do atraso.

Deu no que deu.

Era a vez da extrema-direita que nos foi dado merecer.

A eleição do capitão paraquedista afastado do Exército pelas portas dos fundos — ‘mal militar’ segundo o general Ernesto Geisel –,  ironicamente ensejou a volta dos militares ao governo, dispensado, ao menos provisoriamente, o uso da tropa.

Os ritos do formalismo legal foram observados na abertura de caminho para o autoritarismo com que sonham setores atrasados da sociedade, como a turba que nos anos recentes ocupou ruas  e praças pedindo intervenção militar, ignorante do que foram os idos da ditadura e seu legado de violência e desatinos que compreenderam prisões arbitrárias, tortura e assassinatos.

Aliás, a emergência de uma massa reacionária no início desta década, de cuja existência não desconfiávamos, é ainda uma esfinge desafiando a esquerda socialista.

A força do “bolsonarismo” (aqui compreendendo o establishment, que ele diz combater mas com o qual governa) está à vista e não se reduz ao apoio popular, objetivado nas urnas. Está no Congresso (onde acaba de empalmar as presidências das duas Casas (numa das quais com a ajuda de partidos do campo da esquerda) e na maioria dos governos estaduais, a começar pelas principais economias do país.

O novo governo — uma heterogênea coalização de forças dentre as quais o bolsonarismo é apenas um dos elementos –, conserva o apoio que na campanha lhe emprestaram setores majoritários do Poder Judiciário, à frente o STF, onde pontificam excelências como Gilmar Mendes, Luiz Fux e Dias Toffoli,  e já pontificou a ex-presidente Carmen Lúcia, dando sombra a conhecidos juízes de piso, um dos quais agraciado com uma sesmaria. Outro contemplado com benesse foi o general Villas Bôas, a quem o capitão tributa sua vitória.

O sistema dispõe do Ministério Público, no plano federal e nos planos estaduais e tem ao seu lado o aparato policial repressivo. E ainda conta com a solidariedade de  setores organizados da sociedade, como a grande maioria das seitas neopentecostais, que, ao lado da imprensa (com uma ou outra exceção, como CartaCapital), desempenharam papel relevante na campanha eleitoral, não obstante suas contradições comerciais.

Conta o governo com o apoio do deus mercado, essa criatura onisciente, invisível e onipresente,  que tudo pode, e o aplauso do sistema financeiro, mais preocupado com a bolsa de Nova York;  conta com a simpatia da banca internacional, e tornou-se peça relevante na estratégia político-militar dos EUA de Donald Trump, a quem esse Brasil se oferece como preposto junto aos seus vizinhos.

Esse novo governo, que é de fato um novo regime, em face de sua composição e de seu projeto, não é adversário a ser desprezado, nem seu calcanhar de Aquiles são as ligações perigosas da famiglia que o capitão chefia, ainda quando estas possam leva-lo ao mesmo destino que ceifou as ambições do antigo morador da Casa da Dinda.  Esses novos êmulos de PC Farias são removíveis a qualquer momento em nome da Causa, que está acima de tudo e de todos, e cuja conservação independe do atual locatário do Palácio do Planalto.

O tosco e burlesco Bolsonaro é uma contingência.

Insisto:  falcatruas que começam a ser desvendadas precisam ser denunciadas pelo que pode vir a ser a oposição que ainda não temos, mas esse não deve ser o centro de nosso combate, que nos cobra a denúncia do caráter antinacional e reacionário do governo tutelado pelo Exército. Esta denúncia é que deve ser nosso alvo e nela devemos concentrar todos os esforços.

Nascido de uma aliança civil-militar, o novo regime desenvolve, no entanto, grave projeto de desconstrução  que beira as raias da traição nacional, pois abdica da defesa de nossos interesses, renuncia aos nossos sonhos de soberania e independência, atrela nosso futuro aos interesses de uma potência estrangeira em guerra pela hegemonia política e militar do planeta, e desestabiliza aquelas áreas que respondem pelo desenvolvimento de um país: o Estado, a ciência, a tecnologia, a inovação, o setor energético (donde a privatização da Eletrobrás e a destruição da Petrobras, com a venda de seus ativos na bacia das almas), a alienação da indústria aeroespacial com a venda da Embraer (e com ela a doação de seu know-how adquirido com recursos públicos), a desarticulação do programa espacial e a entrega da Base de Lançamentos de Alcântara aos EUA, em condições até aqui secretas.

Não há diálogo possível nem com este governo nem com seus apoiadores.

Faz parte de seu projeto a destruição, em marcha, do ensino, entregue a um celerado, a perseguição às universidades, ameaçadas de privatização, o ensino público gratuito ameaçado de extinção em benefício dos privilegiados, o  desprezo pela proteção ambiental, as ameaças aos bancos estatais voltados ao desenvolvimento econômico e social, o desestímulo à produção cultural, o desprezo pelos direitos humanos, e o incentivo à violência, a desestabilização da sociedade envenenada pela pregação autoritária que alimenta os conflitos.  A liberação da posse e, amanhã, do porte de armas é, tão-só, um indicador do que está por vir.

Em processo de desmonte está nossa capacidade de defesa, entregue à conveniência dos interesses dos EUA.

Em tão poucos dias, a coalizão civil-militar desmoralizou nossa política externa, e transformou uma das dez maiores potências econômicas do mundo em uma republiqueta irrelevante a serviço dos interesses do Pentágono.

Enquanto cuidamos das esquisitices dos parvos,  o núcleo do poder se volta para o essencial,  a desmontagem da base econômica que assegurou o que até aqui foi logrado como avanços econômicos e sociais.  Enquanto cuidamos dos coadjuvantes, os atores centrais – e um deles é o ministro Paulo Guedes – seguem empenhados em desmontar nossa economia, impedir qualquer sorte de desenvolvimento autônomo, decididos a aprofundar nossa dependência ao capital financeiro internacional.

A política antinacional do ministro da Economia, porém, é apontada como a fiadora, interna e internacionalmente, do que ainda chamamos de ‘governo Bolsonaro’,  e a ela e ao  seu condutor não têm faltado, apesar das andanças e falações do vice Mourão, o apoio da corporação  militar.

Grato pelo apoio recebido no planejamento de sua candidatura e na campanha, o capitão não teve dúvida em partilhar o governo com seus chefes hierárquicos, até porque esta é a condição objetiva para a conservação do poder (ou de suas aparências), condicionada pela sua eventual  habilidade de, trapezista em corda bamba,  governar sendo governado.

É na denúncia desse projeto que se devem unificar as forças de oposição. Sem medo de retomar suas bases ideológicas, cumpre  às esquerdas se antepor à pregação da extrema-direita. Ou seja, cabe à esquerda – de especial à esquerda socialista–, retomar o discurso, as teses e as ações organizativas abandonadas desde 2002, quando a perspectiva do  poder nos levou, nas eleições daquele ano e a seguir no governo, a uma aliança com a direita partidária, ao preço de concessões político-ideológicas, a primeira das quais foi a renúncia aos nossos princípios e aos projetos que então justificavam, e justificam ainda hoje, nossa existência, independentemente da leitura dialética da realidade, que nos cobra novas reflexões e a coragem de mudar paradigmas em conflito com o mundo real.

Faz parte do projeto da extrema direita, como seu aríete,  a destruição do orgulho nacional, porta aberta para o desânimo que leva ao conformismo, quando mais do que nunca a Historia exige a resistência na luta, que nos cobra, para além da retórica, a ação de massas – dependente dos sindicatos, silentes – e a proposta de um projeto alternativo que explicite nossa contraposição ao projeto da extrema-direita, mediante formulação clara, discutida e construída com a sociedade.

Ou seja: a difícil volta às bases.

Estamos em face de um governo lesa-pátria, organizadamente, planejadamente, ideologicamente empenhado na desconstrução do país. Este é, portanto,  o verdadeiro alvo da oposição com os pés na terra e a vista no horizonte.

Cabe à oposição, e de forma especial à esquerda, saltar da tática simplesmente reativa para a ação direta, rejeitar a pauta imposta pela direita e recolocar na ordem do dia os temas que nos interessam como, entre tantos outros, reforma do Estado, redistribuição de renda, desenvolvimento autônomo e criação de empregos, defesa da economia nacional e soberania.

No combate a esse governo não pode haver trégua, nem composição com seus aliados. Para enfrentar esta conjuração contra a Pátria (cuja defesa é tão séria que não pode ficar cingida aos militares) o único meio de que dispõem as forças populares, ainda desarticuladas, é a Frente Ampla que deve abraçar todas as forças que neste momento se alinhem contra o statu quo. Isso quer dizer que a Frente, porque necessariamente ampla, se não pode ser simplesmente uma coligação de esquerda, muito menos pode  compreender, em qualquer alternativa, a composição com forças que compõem a coalizão governista, inclusive no Congresso.

Infelizmente, há setores importantes da esquerda socialista e da centro-esquerda que ainda não entenderam o quadro que as circunstâncias nos impõem, e, por isso mesmo, não sabem identificar nem seus aliados nem seus adversários.

Roberto Amaral