As incertezas e as dificuldades do momento crescem em países como o Brasil, onde as estruturas políticas não permitem uma representatividade efetiva dos pobres e das minorias em geral.
Há poucos dias participei de um debate com intelectuais, políticos sem exercício de mandato, ativistas sociais e membros de associações da sociedade civil das mais diversas partes do mundo. O objetivo era discutir que bandeiras poderiam unir os diversos movimentos que se consideram “progressistas” e como poderiam contribuir para a construção de um mundo mais justo e mais livre. Embora estivessem presentes personalidades de variadas proveniências, era claro que o pano de fundo da discussão, ainda que universalmente relevante, era o mal-estar dos partidos europeus ligados à tradição da social-democracia.
Aliás, o próprio termo “social-democracia” gerou alguma polêmica, já que, em certas regiões do mundo, especialmente na América do Sul, é um rótulo que foi apropriado por partidos de direita ou centro-direita. E não estou falando do velho PSD de Benedito Valadares, uma coalizão de interesses oligárquicos, com vagas pretensões industrializantes, formada quando da queda da ditadura de Getulio Vargas, que deveria originalmente chamar-se “Partido Democrático”.
Mas era o final da Segunda Guerra e a União Soviética emergira como uma das grandes vencedoras na luta contra o fascismo. A sabedoria (ou melhor: esperteza) política levou um dos líderes da nova formação a dizer: vamos botar “social” no nome; está na moda.
Refiro-me a versões mais modernas, como a que emergiu da dissidência do PMDB, que, mais que um partido, era uma grande frente democrática que englobava várias tendências. Assim, o PSDB, embora já demonstrasse inclinação pelo que se veio a denominar de “neoliberalismo”, pretendeu dar uma coloração política mais definida a uma das facções do conglomerado de forças que se juntaram para combater a ditadura. À sua esquerda já existia o Partido dos Trabalhadores, o que contribuiu para que os nossos sociais-democratas sequer buscassem um disfarce mais progressista.
Na Europa, entretanto, a social-democracia tem raízes históricas, que remontam às lutas operárias do século XIX. Mesmo tendo se afastado (sobretudo ao apoiar financiamento aos gastos militares na Primeira Guerra Mundial) de ideais internacionalistas, conservou uma agenda reformista, que ajudou a construir o Estado de Bem-Estar. E muitos (se não todos) sociais-democratas foram importantes aliados dos movimentos de descolonização e tentativas de emancipação econômica no Terceiro Mundo.
Mas, hoje, quais são as reais bandeiras da social-democracia? E que respostas dão aos desafios que atormentam muitos dos seus países, como terrorismo, desemprego, movimentos migratórios e questões ecológicas? Mais importante: a quem dirigem sua pregação por um mundo que não seja totalmente dominado pelo lucro fácil, pela exploração dos trabalhadores (nacionais ou migrantes), pelo tráfico de armas e pelo uso unilateral da força?
Curiosamente, durante o debate, a expressão “classe trabalhadora”, em torno da qual se estruturaram os movimentos sociais do século XIX, e que persistiu como um conceito organizador até décadas recentes, mal foi pronunciada. Assim, a busca pela construção do socialismo democrático (fórmula que prefiro à desgastada social-democracia) parece carecer não só de posicionamentos claros em torno dos temas já citados (e, mais, a situação da mulher, as mudanças climáticas, a governança democrática, o desarmamento e o comércio justo), mas de uma melhor definição sobre as “agências de transformação” da sociedade.
Serão essas agências os próprios partidos políticos, que passam a representar interesses difusos, não ligados a uma posição específica na estrutura econômica? Ou conjuntos ainda mais vagos, definidos em termos geracionais ou de comportamentos individuais? Sem dúvida, há muita perplexidade a respeito dessas questões. Estamos muito longe das convicções que levaram os socialistas dos dois últimos séculos a apostar no papel redentor do proletariado industrial.
Isso, naturalmente, não significa que inexista a percepção das injustiças criadas e reproduzidas pelo sistema capitalista, sobretudo em sua versão financeira e especulativa. Injustiças que se replicam no nível local, nacional e global. Mas como juntar todas essasvítimas da desigualdade, todos esses despossuídos, oprimidos ou abandonados: os refugiados (econômicos ou políticos), os trabalhadores submetidos a regime similar à escravidão, os que sofrem de discriminação de qualquer espécie?
Esse problema, complexo em si mesmo, torna-se mais grave em países como o Brasil, cujas estruturas políticas não permitem uma representatividade efetiva dos mais pobres, dos negros, das mulheres, das minorias, em geral. Se não é possível conceber hoje uma verdadeira democracia que não seja efetivamente “social”, tampouco se pode pensar em um socialismo que não tenha suas raízes na democracia.
É importante ter eleições, sem as quais qualquer governo carece de legitimidade. Mas é importante que as próprias eleições sejam legítimas, de modo que a “voz do povo” se faça ouvir e seja respeitada. O caminho para a democracia e o socialismo é longo, incerto e cheio de percalços. Mas é mister percorrê-lo, superando obstáculos e desmistificando falsas soluções, como as privatizações massivas, o congelamento das despesas em saúde e educação, o encolhimento do Estado e a renúncia à soberania. Para tanto, não basta o combate à corrupção, por importante que seja. É necessária uma profunda reforma das instituições políticas que diminua – ou se possível suprima – o peso do capital nas eleições. Ao lado de “Diretas Já” temos de gritar: “Constituinte exclusiva já!”
Olho: No brasil é indispensável a reforma política. hoje se recomenda gritar, ao lado de “diretas já”, “constituinte exclusiva já”
Fonte: Carta Capital