Ailton Benedito de Sousa

Aos jovens negros – a mosca do alvo das Polícias, neste 2014 de um odiento Brasil re-racializado

O encaminhamento tomado pela nossa mente ao articular a compreensão da expressão consciência negra, já nos predispõe à posse ou fruição desse tipo de consciência, ou seja, dado o fato de termos a pele “de outra cor”, já temos ou somos levados a ter consciência negra (má, alienada, em princípio, ou reconstruída, “desengaiolada”, após reconstrução…). Implica o termo consciência – ciência plural (um saber partilhado) não só com uma coletividade, mas principalmente com nós mesmos, com nossa estrutura psíquica, que ao mesmo tempo é “nós no mundo” e o “mundo em nós”. Assim, ao ouvirmos a expressão, não ocorre ambigüidades do tipo ‘consciência de cor negra’ ou mesmo ‘consciência negra’ – negra significando má, pecaminosa, feia, maldita, suja, significações que se poderia extrair de dimensões do discurso comum, quando pejadas de racismo como sói acontecer.

A partir de instrumental mínimo para tratar a questão da consciência, que não pode ser em abstrato, tem que ser ‘consciência de alguma coisa’, destaquemos aqui, neste texto, como funções psíquicas: a) a percepção, b) a reflexão e c) a imaginação (perceber, refletir, imaginar). Assim, um Eu (que ao mesmo tempo é histórico, emocional e moral) percebe, capta, o estímulo interior ou exterior; responde a partir de respostas descobertas e encobertas; a seguir, como arquivo, registro de imagens, idéias e impressões, chama à mesa de debates dados de seu próprio lastro, cujo conteúdo é socialmente amealhado, para os analisar (dissecar, segmentar, separá-los como objeto, com o fito de desvelar relações, sentido) – é a reflexão… e então, de posse de todos os dados, pode o Self imaginar, surfar, sobre um infinito mar interior – trazendo então ao mundo dito real aquilo que sem ele, o Self e suas habilitações, o mundo jamais poderia ter. O comunicar fecharia o circulo das funções da mente, nesta nossa abordagem.

Um jovem de cor negra no Brasil hoje, num sítio rural, numa favela, principalmente, ou num condomínio de classe média ou alta (raciocinando pelas exceções), vem vindo há 15 ou 20 anos formando seu Self, já que este é histórico… Esse jovem se sente plenamente dotado de todas as funções psíquicas, principalmente o riso, uma brincadeira que nos prega nossa capacidade lógico-simbólica: “cada macaco sem seu galho”… (lembrando que aqui ‘se ri’ pela surpresa do trocadilho sobre o aforismo popular “cada macaco no seu galho”). Continuando na apresentação de seus atributos, bonito, corpo perfeito, rosto expressivo, olhos aquilinos, cabelo crespo, lindo mesmo (para a natureza), boas notas na escola, não vê nenhuma dificuldade em transformar expressões algébricas em curvas ou curvas em expressões algébricas… desenha, bom desempenho com instrumentos musicais, faz poesias, transcende os significados das palavras, boas notas no Enem…um jovem perfeito, normal.

Seu Eu (consciência, saber partilhado consigo mesmo) lhe diz: é “igual a todos”, é ser humano… tem pai, tem mãe, tem parentes laterais e colaterais, família…mas…, tem antepassados?..Epa! Aí entrou na gaiola do discurso racista, nossa “língua geral” de curso absoluto na escola, no trabalho, na igreja, nas instituições formadoras de sentido… Escravo era e é coisa, não tinha nome, tinha apelido, não tinha família AQUI na terra, mas talvez a tivesse “lá, num outro lugar, teria…ou não?” E que lugar seria esse? A ÁFRICA?, macacos, leões, elefantes, ditadores sanguinários, a África, o ânus do mundo, na configuração do espaço geográfico de nosso imaginário racista? Quem são seus antepassados? Construtores de civilizações, de experiências inovadoras no campo das tecnologias, inclusive as sociais, responsáveis, hoje, pela possibilidade de existência farta e em nível de bem-estar para mais de 6 bilhões de seres no mundo? “Não, pelo que me diz o mundo à minha volta, meus antepassados foram escravos, coisas vendáveis, pintados nus, destituídos de qualquer dignidade, chamados de boçais, quando não sabiam se expressar em português, ou ladinos, quando o sabiam”…E isso em todos os livros vem sem crítica, como fato justificado.

Relembremos que o Eu é e m o c i o n a l….mexe com carne dilacerada, sangue, com dor, vergonha, com morte, mas também pode mexer com vida, orgasmo, orgulho, felicidade, amor, paixão, compaixão…

Bem, obviamente aqui, diante dessas questões, que resultam da atividade reflexiva da mente, o Eu do homem negro brasileiro começa a entrar em pânico, a debater-se, ferindo-se, martirizando-se como se preso numa estreita gaiola de espinhos – a cultura, o discurso, a escola, os livros, a história, o mundo ideológico da sociedade que ele pensa ser sua, à qual julga ter pertinência, grande mentira, acredita pertencer a ela como cidadão, mesmo condicionado, isto é, desde que se comporte de um modo específico – por exemplo, que fique no seu lugar, cada macaco no seu galho.

De chofre, desde tenra infância ele sabe, de modo consabido (ciência, conhecimento partilhado e induzido de fora para dentro) que negro, negra, preto, preta, a cor (mesmo a palavra e a raça), a África, negro-negra em todos os seus tons e matizes, mulato, pardo etc., na língua que ele fala ou venha a falar (e no mundo de relações que estabelece assimetricamente com os demais de “outra raça”) ( E ENQUANTO NÃO TOMAR EM SUAS MÃOS A TAREFA DE DESCONSTRUIR A LÍNGUA QUE FALA E TUDO QUE ELA LHE TROUXE) são pilares e vigas estruturantes do universo de significados da pobreza, da violência, da feiúra, da exclusão, da selvageria, da animalidade, da estreiteza, brutalidade ou nulidade intelectual… “Meu Deus”, grita, “mas nesses sentidos EU não sou negro! É o quê? Self partido, engaiolado, dilacerado, fraturado, raquítico, tímido, subalterno, revoltado, hipocondríaco ou o quê?…E o outro lado dá gargalhadas…

A este Self de jovem homem/mulher negros brasileiros, abre-se a alternativa: aceita-se tudo como está, tudo como é, inclusive tornando-se evangélico – pois o tal do ‘velho testamento’ dado pelos colonizadores (ou não?) dá explicação para a maldição de sua raça…(raça pela cor, por castigo). Mas se pode tomar um outro caminho, que também vai se bifurcar ali adiante: – resistir ou render-se, cadeia ou morte, miséria ou roleta russa? E assim eternamente… Esse destino esconde uma lágrima que quer sair e não sai, ninguém sabe como expressá-la.

Relembremos que o Eu é uma entidade M O R A L – define-se a si, de chofre, no campo do BEM ou no campo do MAL.

Relembremos, ainda, que como vimos, este Eu está no interior de uma estreita gaiola de espinhos, é lanhos na carne para todos os lados, é sangue, é recordação (a história) que deve ser esquecida por todos os tempos e lados, é condenação e remorsos a escarificar a carne e o pensamento por todos os lados, pois o Eu é uma entidade emocional e moral. Por todos os lados, é história roubada que jamais deve ser lembrada; por todos os lados, é lenda ignóbil criada pelo colonizador, que de tão ignóbil, deve ser eternamente esquecida/lembrada, ou lembra/esquecida? …não sei mais de nada… O Eu se debate em sua gaiola.

E a imaginação? Relembremos também que o Eu é sede da imaginação…Abençoados aqueles cuja imaginação salta da gaiola de espinhos e provoca a reverência dos seres humanos justos. Imaginação fugitiva mundo afora que se manifesta na música, nas letras, nos esportes, nas artes e ciências em geral, na filosofia e religiões, principalmente quando esses criadores são invisibilizados, vilipendiados, defraudados de seu patrimônio espiritual como foram e são vários músicos intuitivos que venderam e vendem suas melodias para poderem sobreviver…como Mestre Valentim, primeiro arquiteto e urbanista brasileiro, uma de cujas peças, o Chafariz, além do Passeio Público, está ali na Praça XV de Novembro, arrancado várias vezes de lugar, agora abandonado num desvão, invisibilizado.

Quanto à gênese do Eu, relembremos aqui que é um processo de tomada de consciência que o constrói. Se esse processo mobiliza dados dos mundos ditos referencial e simbólico, submetendo-os à livre e corajosa reflexão e gerando produtos socialmente certificados em relações simétricas, de respeito e dignidade, temos a boa consciência, temos o Eu-cálculo correto….Se a reflexão gera produtos denegadores do sujeito tanto por parte da sociedade quanto por parte do próprio sujeito, justificando a injustiça, esse Eu terá a má ou falsa consciência, o Eu-cálculo incorreto, a gaiola estreita.

Pois bem, o Dia da Consciência Negra, a Semana, Mês, Ano, Século, a Eternidade da Consciência Negra é a corajosa opção pela desconstrução desse Self engaiolado, é a reconstrução do Self Homem Planetário, herdeiro do patrimônio material e cultural da Humanidade nessa infinidade de séculos de História, sem o ódio e a arrogância própria ao Demiurgo supremacista, ódio e arrogância próprios a um mundo mesquinho que por quinhentos anos institucionalizou a escravidão de homens, mulheres e crianças de pele negra, quando esta escravidão já devia estar banida do mundo como prática imoral. Ódio e arrogância que através de uma escola de currículo planetariamente padronizado logrou DELETAR a participação da ÁFRICA e de seus povos negros na construção dos vários modelos de civilização que a Espécie, nessa milenar marcha sobre o Planeta, logrou dar perenidade, inclusive este modelo que despudoradamente eles chamam de “civilização ocidental, européia, greco-romana-judaico-cristã”.

Demiurgo supremacista que se apropria sem nenhum pejo do patrimônio espiritual de toda a humanidade, exibindo suas peças em museus que são verdadeiras Covas de Ali Babá… Falso Demiurgo que subsumiu e estigmatizou todas as formas viventes, superior, inferior, nativo, colonizador, senhor, nobre, plebeu, escravo, homem, animal, negro, bruto, selvagem…. – E que assim divorciou-se da Natureza, do reino vegetal, do reino animal, exterminando uns, caçando outros, mantendo-os em jardins zoológicos. Demiurgo que sem crítica, continua exigindo aplausos por mandar bugigangas a Marte com o nosso dinheiro. Esse falso Demiurgo, assumindo a função de DOMINADOR e EXTERMINADOR DA NATUREZA, de toda a Biosfera – porque a odeia, campo da diversidade absoluta e ditosa, acolhedora de todas as formas de vida, de harmonias e desarmonias, porque um complexo vivente por si MESMA. O Demiurgo odeia a Diversidade… Não é àtoa que ele começa a correr para Marte. Vá e o destrua também.