Por:Reginaldo Oscar de Castro

Reginaldo Oscar de Castro

Senhoras e Senhores,

A honrosa designação do eminente Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que a mim atribuiu a desvanecedora incumbência de representar os advogados brasileiros nesta Sessão Solene, destinada a homenagear a grandiosa trajetória do Ministro Evandro Lins e Silva, é, simultaneamente, das mais gratas e das mais complexas dentre as que tenho tido a oportunidade de me desincumbir.

É grata por se tratar de uma figura humana inesquecível e querida, um homem de bem – e do Bem -, com quem tive o privilégio de compartilhar momentos de grande prazer intelectual e de precioso aprendizado. Embora tenha tido convivência mais intensa com o Ministro Evandro, como carinhosamente o chamávamos, apenas na etapa final de sua vida, considero-o um querido e inesquecível amigo, que é para mim também referência profissional e moral definitiva.

Além de magistral advogado e homem dotado de cultura superior, exímio contador de casos, tinha prodigiosa memória e talento fabulador fascinante dom que a vida reserva apenas aos que por ela passam simultaneamente como observadores argutos e agentes ativos, exercendo ação fecunda e transformadora em torno de si.

E é exatamente em função de tantos dons e talentos, postos generosamente a serviço de seu tempo e de sua gente, que a tarefa de analisar, compreender e evocar a personalidade do Ministro Evandro Lins e Silva torna-se complexa, quase sobre­humana.

Trata-se de um personagem plural, denso, que exerceu funções de grande relevância pública, deixando em cada uma dessas etapas a marca de sua formidável inteligência e de seu singular dinamismo.

Foi jornalista, advogado, político. Procurador Geral da República, ministro-chefe da’ Casa Civil, Chanceler, ministro do Supremo Tribunal Federal, fundador do Partido Socialista Brasileiro, membro da Academia Brasileira de Letras e, por fim, do Conselho da República, mas, sobretudo, defensor obsessivo dos direitos humanos e do ideal libertário, que marcou toda a sua vida, levando-o a enfrentar sem assombro duas ditaduras – a do Estado Novo e a do Regime Militar pós-1964.

Há, porém, um fio condutor, uma espécie de traço de união, que acompanha toda a trajetória de Evandro, em todas as funções que desempenhou- e é exatamente esse ideal libertário que mencionei.

Onde quer que atuasse, inclusive quando aqui esteve, nesta Colenda Corte, como magistrado, foi sempre o paladino da liberdade. Se me permitem um paradoxo, direi que ele foi um servo da liberdade, a tal ponto subjugou todos os interesses e valores de sua vida a essa causa, que não será exagero afirmar que o Ministro Evandro Lins e Silva, um abolicionista segundo ele próprio se proclamava, tinha obsessão pela liberdade.

Foi por defendê-Ia incondicionalmente que acabou sendo cassado pelo Ato Institucional nº 5 e afastado desta Corte, onde proferiu votos tidos como provocadores pela miopia dos áulicos do regime de arbítrio que se implantava.

Coube-lhe, por exemplo, relatar o pedido de habeas-corpus do então governador Miguel Arraes, então preso preventivamente por mais de um ano na ilha de Fernando de Noronha. A prisão era arbitrária, não havia processo, nem poderia haver prisão preventiva tão longa. Mas o ambiente era de medo e bem poucos ousavam desafiar a nova ordem.

Pois o Ministro Evandro concedeu o habeas­ corpus, acompanhado pela unanimidade da Corte, suscitando reações de inconformismo nos setores mais duros do regime, que aventaram a hipótese de não cumprir a ordem judicial. Mas, apesar de todos os pesares, prevaleceu o bom senso e Miguel Arraes foi libertado. O marechal Castello Branco não quis desafiar o Supremo Tribunal.

Ele já havia votado pela’ concessão do habeas­-corpus reivindicado por outro governador deposto pelo regime – Mauro Borges, de Goiás -, além de diversos outros, envolvendo gente igualmente perseguida por idéias políticas.

Mas a audácia libertária de nosso homenageado seria mais adiante cobrada pela insana linha dura que sucederia Castello, em ato que consistiu em violência jamais praticada contra o Supremo Tribunal Federal, com a destituição de três de seus mais ilustres membros: os Ministros Vitor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva.

A ascensão de Costa e Silva, tornaria inevitável uma retaliação mais efetiva a todos os atingidos. Evandro Lins e Silva, isoladamente, representava tudo o que a nova ordem autoritária queria expurgar: o ideal libertário, o desassombro pessoal, o poder civil.

Além disso, sua identificação com a ordem anterior, na qual havia integrado o primeiro escalão ministerial, agravava a situação.

Cassado, voltou à militância forense, seu habitat natural. O Ministro Evandro foi juiz e político sem jamais perder a chama do jovem advogado que conservou até sua partida aos 90 anos de idade.

Retornou ao convívio de seus colegas na Ordem dos Advogados do Brasil e, por inúmeros mandatos de Conselheiro Federal pelo Piauí, iluminou os caminhos da entidade em todas as lutas pelo Estado de Direito por ela empreendidas. Agraciado com a Medalha Ruy Barbosa, continuou integrando o Conselho Federal. Foi o redator de diversas cartas que sintetizavam as conclusões das Conferências da Ordem dos Advogados do Brasil, inclusive, redator de fato, da última, realizada em Salvador.

Calamandrei, ao tratar das diferenças entre juízes e advogados, assevera que “o advogado é a fervente e generosa juventude do juiz; o juiz é a velhice repousada e ascética do advogado”. Ao Ministro Evandro tal conceito não se aplica. Retornou à sua origem com as mesmas virtudes de combatividade e ímpeto de sempre e que justificaram a admiração que granjeara em todo o país.

Não se pode olvidar que deixou a suprema magistratura, quando era quase um sexagenário. Poderia ter se acomodado a uma cátedra ou a uma aposentadoria digna. Mas, como dito, insistiu em retornar à arena forense, à tribuna. Voltou a atuar como criminalista, um dos maiores – senão o maior – que este já país já teve. E já aos oitenta anos ­quando dele se esperava no máximo que cultuasse as lembranças de sua profícua carreira – assume nada menos que a causa do impeachment do presidente da República.

Deixa de lado o conforto e a estabilidade que a posição de oráculo da advocacia brasileira lhe garantia para aceitar o convite de Barbosa Lima Sobrinho e Marcelo Lavenère Machado de conduzir o processo de impeachment contra o presidente da República.

Ele, que se notabilizara como defensor, assume o papel de acusador, circunstância que interpretou de outro modo, afirmando que não acusava ninguém, apenas defendia seu país, atingido duramente em seus valores éticos e morais por um governo indigno deste nome.

E o que se viu foi a velha chama do advogado, forjada em causas memoráveis no Tribunal do Júri ­no qual conquistou a marca de mais de meio século de atividades -, viva como nunca, a exercer seu talento arrebatador da tribuna do Senado. Ali estava a eloqüência a serviço do bem comum, a mesma que corajosamente afrontou o arbítrio ao tempo do famigerado Tribunal de Segurança Nacional, no Estado Novo.

A propósito, em seu depoimento ao Centro de Pesquisas e Documentação da Fundação Getúlio Vargas, que resultou no primoroso livro “O Salão dos Passos Perdidos”, o Ministro Evandro revela que as defesas que fazia de presos políticos junto ao Tribunal de Segurança Nacional, eram gratuitas.

Não considerava o crime político como questão de natureza penal – e sim como matéria de História. Defender acusados de crimes políticos, ainda quando não tivessem razão, era compromisso com a História – e não com a profissão! E ele o cumpriu com coragem, talento e determinação.

Após a deposição de Getúlio Vargas em 1945 e a extinção do Tribunal de Segurança Nacional, Evandro dedicou-se exclusivamente a seu escritório de advocacia, que manteria até começar a assumir cargos políticos no governo João Goulart.

Dono de uma biografia profissional riquíssima, o Ministro Evandro Lins e Silva vivia de olhos postos no futuro. Quando lhe perguntavam qual a causa mais relevante que teria defendido, respondia invariavelmente: “A próxima”,

Não lhe faltavam – muito pelo contrário ­causas a evocar, tantas e tão expressivas que bastaria pinçar uma, aleatoriamente, para marcar definitivamente sua carreira, como também de qualquer advogado.

Mas optava sempre pela “próxima” na expectativa de continuar a exercer o bom combate, na certeza de que estava predestinado – e de fato esteve – a uma presença longeva na carreira.

Quem se debruce sobre as inúmeras causas defendidas por Evandro Lins e Silva, há de estar diante de rica fonte de aprendizado. Ali, se encontram reunidas as grandes virtudes do advogado: sensibilidade e compreensão para as· fragilidades humanas; disposição de estudo e investigação; conhecimento do ordenamento jurídico, da doutrina e da jurisprudência; sólida cultura geral e humanista, respaldada na leitura dos clássicos universais; argúcia, paciência, sobriedade, elegância e, sobretudo, criatividade.

Esses atributos são visíveis na defesa por ele patrocinada no rumoroso “caso do Marcha-à-Ré”, como ficou conhecido em Belo Horizonte. Constituído pelo réu, já condenado, para o 2° Júri, realizado com a presença de qualificada platéia da qual participaram o Ministro Sepúlveda Pertence, bem como nossos colegas José Guilherme Vi/ela e José Gerardo Grossi, o Ministro Evandro Lins e Silva, a todos surpreendeu com a demonstração de que a coagulação sanguínea ocorre no máximo em 11 minutos, circunstância suficiente à destruição do iter críminis contido na denúncia que exigia, para sua admissibilidade, tempo de coagulação muito superior, sem o qual o homicídio não poderia ter sido cometido pelo acusado. Derrotou a acusação, a imprensa e a própria opinião pública, com a absolvição do réu que havia sido injustamente denunciado.

Nas ações político-partidárias seguiu sempre o conselho de São Paulo, de buscar o bom combate. Fundou em 1947 o Partido Socialista Brasileiro, cuja doutrina pregava a justiça social e o fim das desigualdades. Em agosto de 1955, foi um dos principais articuladores da Liga de Defesa da Legalidade, movimento que defendeu a realização das eleições presidenciais daquele ano, ameaçadas pela pregação golpista de setores reacionários que viriam a triunfar nove anos depois, em 1964.

Juscelino venceria as eleições e teria sua posse ameaçada. Evandro esteve ao lado das forças que se empenharam por garantir a posse e a governabilidade. Quando da renúncia de Jânio, acompanhava João Goulart numa visita à China. De lá, voltou Procurador GeraI da República do novo governo; depois seria nomeado chefe da Casa Civil, Ministro das Relações Exteriores e, por fim, ministro do Supremo Tribunal Federal, de onde foi brutalmente afastado pelo Ato Institucional n° 5, em 1969.

No Ministério das Relações Exteriores, adotou linha doutrinária pragmática, de defesa dos objetivos nacionais, que resumia com estas palavras: “Nem subordinação, nem isolamento, mas sim independência e cooperação no interesse do País e da paz entre os povos”.

Nada mais atual é lúcido, num mundo tristemente marcado pela ganância da globalização neoliberal.

O século XX foi palco de atuação: de grandes advogados, que se tornaram lendários não apenas no âmbito de nossa classe, mas para toda a sociedade brasileira. Fazem parte da História do, Brasil.

O Ministro Evandro Lins e Silva está ao lado dos maiores advogados de nossa história, mesmo de uma figura gigantesca e seminal do nosso Direito, como Ruy Barbosa. Ruy é o advogado e jurisconsulto, que adentra pelo jornalismo e pela política, fazendo a travessia do século XIX para o século XX e a transição entre o regime monárquico e o republicano.

Evandro, que também fez incursões pela política e pela magistratura, é, como já disse, o advogado em tempo integral. Como RUYI era movido pela obsessão libertária. Personifica-a ao longo de sua extensa biografia. E torna-se referência inevitável a quem queira conhecer o panorama jurídico brasileiro dos últimos sessenta anos.

Filho de juiz, nasceu em Parnaíba, interior do Piauí, em 1912. Estudou em escolas públicas, entre seu estado natal, Pernambuco (estado de origem de sua família) e Rio de Janeiro, onde fez os estudos secundário é superior, radicou-se, criou família e exerceu toda a sua carreira.

o êxito obtido em sua longa jornada está dentro daquilo que sustentou Maurice Garçon: “A celebridade de boa marca só se conquista pelo trabalho, ciência e talento.” A frase resume a vida de Evandro Lins e Silva, que seguia fielmente a máxima de Thomas Carlyle, segundo a qual “De nada serve ao homem lamentar-se do tempo em que vive. O único bem que pode fazer é empenhar-se em melhorá-lo”.

O Ministro Evandro Lins e Silva, sem dúvida, com sua existência luminosa, sua crença no ser humano, sua crença religiosa na liberdade, melhorou o Brasil. E não há homenagem maior à sua memória que o compromisso de trabalhar para que o país continue melhorando, sempre sob a chama da liberdade.

Para concluir, faço minhas as palavras de Fábio Konder Comparato, segundo quem “a extraordinária harmonia entre a atividade profissional e a vida pública de Evandro Lins e Silva, está na fidelidade a uma mesma linha de conduta ético-social”. Sua vida é uma lição de cidadania e um exemplo para todos nós – e certamente há de iluminar e fecundar as gerações futuras. Que assim seja.

Muito obrigado.