por: Roberto Amaral

Postado na Carta Capital on line dia 19/11/2013

O Brasil começa a resgatar a grande dívida com a memória do mais injustiçado dos homens públicos brasileiros

Foto de Dick DeMarsico / Biblioteca do Congresso dos EUA

Jango

A exumação e a análise minuciosa dos restos mortais de João Goulart atendem a um clamor da cidadania brasileira e dos familiares do único presidente que morreu exilado

 O Estado brasileiro, ao receber com honras de chefe de Estado os restos mortais de João Goulart, começa a resgatar a grande dívida de todos nós para com a memória do mais injustiçado dos homens públicos brasileiros em toda a República. À esquerda, injustamente, e à direita, justamente. Por isso mesmo, é apreciável o gesto da Presidente Dilma e eu gostaria de registrá-lo, senão como uma auto-crítica coletiva, ao menos como o reconhecimento da necessidade de revisão do papel histórico que Jango ocupou em nossa História. Por isso mesmo, é ensurdecedor o silêncio da esquerda  brasileira, que, passados tantos anos da queda da ditadura Vargas (1937-1945),  na qual muito sofreu, não conseguiu, ainda, superar a intoxicação do udenismo.

Se o ‘Estado Novo’ parece materialmente bem distante, a doutrinação anti-varguista, anacrônica, anistórica, acrônica,  é onipresente nos meios de comunicação. Jango não poderia dar certo, não lhe foi  permitido dar certo, pois seu sucesso seria a vitória do fantasma varguista, o espectro que a burguesia escolhera para assustar-se.

Não terá sido mero acaso que, vencidas décadas, vencido o ‘Estado Novo’ e vencido o mandarinato militar (1964-1985), militantes  progressistas e de esquerda em geral, a esquerda católica principalmente, o emergente sindicalismo do ABC (1978) que desembocou no PT (1980) — para quem o passado do sindicalismo brasileiro era só ‘peleguismo’  bem como a  socialdemocracia conservadora do tucanato    tenham apostado todas as fichas  no projeto de  limpar da História a presença do varguismo e do seu trabalhismo.  O que colocar em seu lugar ainda não está definido, nem são tão diversos os usos e costumes sindicais de ontem e de hoje, se o ‘sindicalismo de resultados’, que não é a proposta de uma só Central, for sua melhor amostra.

A fúria é explicável na lógica do capitalismo tupiniquim, pois Jango ousou trair os interesses de sua classe de origem simplesmente ao filiar-se ao trabalhismo e defender, segundo suas circunstâncias, os interesses dos trabalhadores assalariados, num país que já conhecia a industrialização e se encontrava a braços com a crise rural (em um de seus momentos mais agudos), o cadinho da crise urbana de nossos dias. Já distantes  da estancada experiência do governo Jango (1961-1964), vencida a ditadura militar,  lavadas as feridas, é possível fazermos a análise crítica dos erros, para os quais nossas organizações não tiveram olhos para ver quando era preciso, e muitas vezes, foram por     eles responsáveis. De um lado, o desprezo para com os recados da correlação de forças desfavorável,  de outro o estímulo ao voluntarismo minando a possibilidade de hegemonia dentro do governo.

A emergência das massas acompanhou Jango na subida da rampa do Alvorada, no rasto final da Campanha da Legalidade, inconcluída até 1988, derrotando a tentativa de golpe de Jânio e a tentativa de golpe dos militares, Denis à frente. Mas lá não ficou para garantir a permanência do novo projeto. A virtù é atributo de quem sabe ganhar (o governo) e nele conservar-se, lembra-nos o gênio fundador da ciência política.  O vice feito presidente tratará de compor-se no sistema  com o recurso que domina, suas tradicionais negociações entre generais, na mesma linha das negociações de sempre com empresários, partidos, políticos, líderes estudantis e sindicalistas. Mais uma vez, e não pela última vez, o estadista brasileiro abandona a grande política  para suicidar-se na pequena política.  De resultado efetivo, a emergência do povo-massa, mas povo sem organização. A vitória da legalidade  fizera ferver em temperaturas mais altas o ódio renitente, o ódio do medo e o ódio da vingança, até mesmo  o ódio puro ódio  de nossos terratenientes, de nossos latifundiários (e Jango vinha da propriedade da terra!), de nossa burguesia industrial atrasada, de nossa burguesia financeira atrelada a Wall Street. A avenida Paulista e a avenida Rio Branco jamais  perdoariam o herdeiro de Vargas por  haver-se aliado ao movimento sindical que lhes pedia aumento de salário e promovia greves,  logo ele, fazendeiro e burguês. Foi fácil elegerem-no como o adversário a ser abatido.

O Marechal Odílio Denis (por quem certa esquerda manifesta apreço em face de seu comportamento no 11 de novembro de 1955), afirma  em suas memórias (Ciclo revolucionário brasileiro, 1980), que a conspiração para depor Jango teve início imediatamente após sua posse na Presidência. Poderia ter dito, sem mentir, que a saga golpista recomeçara com a eleição e posse de Vargas, o ex-ditador deposto que ressurgia do exílio de Itu para voltar ao Catete nos braços do povo e segundo as regras políticas e eleitorais estabelecidas pelos adversários vitoriosos para impedir seu retorno. Denis, poderia ter dito que o golpismo se assustara com a posse de João Goulart no Ministério do Trabalho O confronto militar de 11 de novembro de 1955, cujo saldo foi a recuperação da legalidade, cobrara  preço altíssimo à direita militar: engolir Jango, o ‘sapo barbudo’ daquele então, para salvar o mandato de Juscelino, ameaçado pela tentativa de golpe de Carlos Luz, Café Filho, Pena Boto, Juarez Távora, Eduardo Gomes e Carlos Lacerda, entre outros muitos.  Mas, em 1961, depois da vitória conservadora representada pela eleição de Jânio Quadros, dar posse na Presidência ao  vice trabalhista, imiscuído como contrabando numa chapa heterodoxa formatada pelo povo, isso já era demais.

O resto é história contada e sabida.

O  golpe de 1º de abril, sendo a tragédia de nossa democracia, foi, apenas, um marco na violência  cevada ideologicamente no udeno-lacerdismo dominante em todo esse largo  período; essa violência, potencializada pelo inefável apoio da grande imprensa, pervadia o mercado e os quartéis, e frequentava a sociedade e a caserna mediante grupamentos e grupelhos civis-militares como a Cruzada Democrática, do grotesco almirante Pena Boto, e o Clube da Lanterna, dirigido por lacerdistas.

Venho falando no ódio a Jango, que, porém, só entra em cena quando (e pour cause) transformado  em herdeiro presuntivo  de Vargas. Pois o ódio real, original,  era mesmo  ao ditador que voltara à Presidência pelo voto, e comandava, sob rigoroso respeito à Constituição e às leis,  um governo nacionalista e democrático. Ameaçadoramente nacionalista.

Na verdade, este era o projeto que se procurava deter  com  o preventivo defenestramento de Jango: morto Vargas,  destruir a sobrevivência do trabalhismo  de viés nacionalista.

Vem, pois,  de longe, o projeto udeno-militar de destruição do trabalhismo ( a então aproximação brasileira possível do socialismo), como doutrina e como ação, muito mais do que como partido político. Mesmo depois das intervenções militares, uma forma de  anti-varguismo é assimilada tanto pelo emergente lulismo quanto pelo  tucanato vitorioso em 1994, o qual, ainda preso a 1932, se impõe o compromisso (palavras do sociólogo príncipe)  de ‘varrer a era Vargas’. Que, no entanto, sobrevive.

Em 1961, garantindo a posse do vice constitucional, as forças da legalidade, desorganizadas e atingidas pelas divisões internas, sem projeto político unificador, destroçadas pelas disputas intergrupos e, até, medíocres disputas pessoais,  não tiveram condições de  assegurar a integridade constitucional, e João Goulart é levado a entrar no terreno das concessões às forças que o combatiam, na esperança de cooptá-las. As massas e as esquerdas ignoravam o fato de não estarem sozinhas no proscênio político. Nele tinham cadeira cativa e prioridade setores militares os mais diversos, inclusive reacionários e golpistas,  e grupos políticos e econômicos que dialogavam diretamente com o vice-presidente. No calar da noite foi aprovada a Emenda Parlamentarista, condição imposta pela  direita golpista aparentemente derrotada, para, nos termos da concordata, permitir a posse, como Presidente da República, do  vice-presidente indigesto.

Mas essa é uma características da História brasileira regida por personagens burgueses: sempre que o estadista é chamado a dar um passo à frente, ele dá um passo atrás. Mais forte do que tudo parece ser o DNA da conciliação, que leva à transação e, quase sempre, ao congelamento da História. Daí, de um lado, a cadeia de erros das organizações políticas numa linha de continuadas reivindicações às quais consabidamente o governo não podia dar consequência, donde o desgaste do presidente e de seu governo; de outro lado, ainda em nome da conciliação, a impunidade para os conspiradores facilitando a ação dos golpistas. Deu no que deu.

As facções que agiram para destruir o governo Vargas (1951-54), contrariadas em seus interesses pelo  viés nacional-popular, redobrariam em forças e alianças, internas e externas, na desestabilização do governo Goulart, destacando-se a atuação do embaixador Lincoln Gordon, dos EUA evidentemente, e,  como sempre,  dos setores majoritários da imprensa brasileira.

A última conciliação de Jango (deixo de lado a Frente Ampla de Lacerda e Juscelino) terá sido a escolha do exílio em 1964, ante  a iminência de eventual choque armado e, dele consequente,  a possibilidade ou certeza do exorcizado ‘derramamento de sangue’, tampão-tabu que estanca qualquer possibilidade de revolução (lato sensu) em sociedade que, desde seus primórdios, optou pela solução pelo alto, o acordo dos cavaleiros, a transação entre os donos do poder.

Talvez,  por tudo isso, as reformas de base que Jango  não conseguiu implantar permanecem muitas delas  por ser feitas (estranhamente sem o mesmo apelo popular de antes), após quase trinta anos do fim da ditadura, uma Constituinte e 12 anos de governo de centro-esquerda.

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