por: Roberto Amaral

Postado na Carta Capital on line dia 27/02/2013

Fernando Lira

Fernando Lyra, qua há 20 anos sofria com um problema grave no coração, morreu em 14 de fevereiro.
Foto de Leo Caldas

Não nos basta compreender a morte como ato natural e absolutamente necessário; continuamos resistindo a aceitá-la como fenômeno intrínseco à existência humana. Cristãos desesperados e materialistas em crise existencial, resistimos emocionalmente à sua evidência, e sempre lamentamos, nas fímbrias do desespero, as perdas que a inexorabilidade da finitude nos impõe. E sempre nos espantamos com sua imperial presença, como se ela chegasse sempre de surpresa, um acaso que não soubéramos evitar. Nem sua inevitabilidade, a que reagimos, nem sua esperança (muitas vezes somos levados a desejá-la), nem sua iminência, presente em nosso dia-a-dia, nos salvam dos sustos da perda, sempre irreparável, por que cada homem (isto é, cada ser) é um individuo singular, e, como singularidade, um ente insubstituível. Na história da humanidade, na história vivida e na história por viver, do ponto de vista de nossa estrita individualidade, todavia, não passamos de átomo irrelevante, de um átimo de tempo, sem vida própria. Oscar Niemeyer falava da vida como pequena chama exposta ao vento, assinalando sua fragilidade, seu caráter efêmero, transitório, fugidio. O ser perdurante é o homem coletivo, é a história que logra escrever.

Para nossa paz, a vida humana não se conta pela sequência de luas, não é a permanência cronológica que ressalta, mas o que, no espaço da vida longa ou curta, cada indivíduo fez de sua existência, conduzindo seu destino (sempre mutável), de costas para sua essência (uma anterioridade dada), dominando sua natureza humana e a natureza como ente anterior. Relembremos o sempre sábio Antonio Vieira: “Quando vos perguntarem quem sois, não vades revolver o nobiliário de vossos avós, ide ver a matrícula de vossas ações. O que fazeis, isso sois, nada mais” (Sermão da Terceira Dominga do Advento).

Se o destino é mutável, se o homem determina sua essência a partir de sua existência, ele é o único responsável pelo que faz e pelo que deixou de fazer. A partir deste momento, o homem não apenas tem história própria, como é seu único construtor, escolhendo seu papel, nada obstante a variedade de circunstâncias (que, todavia, pode alterar) e de sua contingência histórica (que pode superar). O importante, é o que o homem, livre, apto a escolher, faz de sua existência.

Essas considerações me vêm a propósito de duas perdas recentes, igualmente esperadas, essencialmente naturais e fatais, e igualmente lamentadas, posto que o homem que rejeita a inevitabilidade da tragédia biológica é o mesmo que se bate contra a artificialidade da tragédia social.

Pois o ponto de partida, unindo dois seres tão distintos, é a luta comum contra a tragédia social, e o quase estoicismo (sem renúncia à luta) com que enfrentaram a tragédia biológica. Neste vértice encontram-se Fernando Lyra, um dos formuladores da Nova República, ativista da boa política, e Lauro de Oliveira Lima, humanista, pensador, formulador da nova escola secundária brasileira, introdutor das lições de Jean Piaget no Brasil. Mas ambos, cada um a seu modo, ou, cada um segundo sua circunstância, agitadores sociais.

Fernando Lyra foi um dos fundadores da oposição parlamentar à ditadura (e jamais nos esqueçamos de Alencar Furtado) e, principalmente, o articulador daquilo que a crônica política grafaria como os ‘autênticos do MDB’, de saudosíssima memória, memória que precisamos recordar, ainda agora, quando somos obrigados a conviver com seus descendentes. Atuou destacadamente na mobilização do memorável movimento das ‘Diretas-já’, e, como sua consequência quase inevitável, destacou-se como um dos articulares da candidatura Tancredo, a qual, embora terminando por levar Sarney ao poder (de novo o império da tragédia biológica destecendo os engenhos humanos), abriu as portas da República para a redemocratização, lenta e gradual, muito avançada, mas ainda não concluída, pois não conseguimos, até aqui, por exemplo, pôr em funcionamento pleno a ansiada ‘Comissão da Verdade’ e não temos segurança política de que a apuração que a história e a democracia exigem será levada até o final.

Lyra, no auge de sua maturidade intelectual e política, foi condenado a afastar-se da arena parlamentar e das disputas eleitorais, preparando-se para o desfecho existencial anunciado, quando muito ainda poderia oferecer à república à qual dedicou seus melhores momentos. Mas concluiu seu projeto cercado do reconhecimento republicano. O mesmo, porém, não se pode dizer de Lauro de Oliveira Lima, que encerrou sua existência amargurado pelo silêncio do ostracismo, o silêncio invejoso da Academia, quando, no panteão brasileiro, sua estátua deveria repousar ao lado das de Anísio Teixeira, seu mestre, e Darcy Ribeiro e Paulo Freire, seus colegas e amigos, parceiros e companheiros da mesma saga: a escola pública, universal e de qualidade, habilitada para preparar cidadãos. A escola pública tão maltratada, e só maltratada por destinada aos pobres.

Como educador, Lauro foi essencialmente um político, porque seu objetivo era mudar o mundo, para melhor, por meio da educação, preparando o cidadão apto a realizar a saga revolucionária do progresso. Fernando Lyra, a seu modo, foi um pedagogo, pois que é o político, o bom político, senão um semeador de ideias, um formador de homens?

Conheci Fernando Lyra nos idos de 1986, ele, parlamentar destacado, ex-ministro da Justiça, eu secretário-geral do PSB intentando, ao lado do saudosíssimo Jamil Haddad, a reorganização de nossa sigla partidária e o registro definitivo. Fiquei feliz quando, anos passados, eu o recebi no partido, trazido pelas mãos de Miguel Arraes. Lauro, conheci em Fortaleza, nos já distantes idos dos anos 50, ele inquieto agitador de ideias novas da educação, eu seu aluno, desde então e por toda a vida, amigos e parceiros, em diversos projetos, em diversos textos, em diversos sonhos, e na dor, vítimas ambos da repressão militar, exilados dentro de nosso próprio país, lutando na cidade grande pela sobrevivência física mas sem um só dia ensarilhar as armas na resistência contra a ditadura.

A obra de Fernando é sua vida política. As suas ações. A obra de Lauro são suas ações, é seu pioneirismo, mas é igualmente sua extraordinária bibliografia que o consagra como um dos maiores mestres da educação brasileira.