Com 60 anos de carreira, o ator Osmar Prado fala sobre o papel de Kid Jofre no filme “10 segundos para vencer”, as injustiças do atual estado de coisas no Brasil e o fervor revolucionário da arte
TEXTO JOÃO PAULO BARRETO, DE SALVADOR

CONTINENTE Em agosto, você recebeu o prêmio de melhor ator em Gramado. No discurso, salientou o processo de prisão baseado em convicções, e não em provas, contra o ex-presidente Lula. É curioso observar esse paralelo de trajetórias entre ele e o Éder Jofre, quando todas as chances ínfimas os levariam a desistir de seus objetivos. Mas eles perseveraram.

OSMAR PRADO Sabe, eu vi muitas entrevistas do Éder nas quais o entrevistador o via de uma forma jocosa. E o Éder era muito inteligente, mas à maneira dele mesmo, aquela maneira simples. E muitas vezes eu vi que os jornalistas não estavam dando o devido respeito àquele homem. Esse paralelo a gente vê no ex-presidente Lula. Eu vi outro dia uma entrevista com o Reinaldo Azevedo, fazendo um pouco de chacota do Lula. Isso não sou eu quem está falando. Tem vídeo disso ridicularizando a questão dos erros do vernáculo. Como se ele, pelo histórico de vida, pudesse falar um português daqueles que frequentaram boas escolas. Mas ele fala a linguagem de que nenhum deles, letrados, consegue falar. O que é o Lula? O Lula contrariou todas as leis da física. O Lula não era para dar certo. Como um nordestino sem dedo, tendo o curso primário e um curso técnico, torna-se um líder sindical, candidato à presidência da república, perdendo três vezes, ganhou na quarta? Estadistas do mundo inteiro o respeitam. Noam Chomsky veio visitá-lo. O (Adolfo Pérez) Esquivel já confirmou a sua candidatura ao prêmio Nobel da Paz. O Obama diz que ele é o cara. Quem é o Lula? Em vez de nós tentarmos entender a alma desse homem, o que é preciso fazer a ele? Porque temos que entender o lado da direita, até para poder entender os argumentos deles. E eu me pergunto o que o Moro vai fazer depois que o Boulos invadiu o triplex do Guarujá e viu que a reforma de R$ 1.300.000,00. E em 2019, a ONU vai julgar o processo do triplex pelo mérito, não pela convicção. No dia da prisão do Lula, eu estava lá em São Bernardo. Ele, ao invés de ter a foto da algema, organizou a própria resistência. No dia do aniversário da dona Marisa, do dia da homenagem à sua falecida esposa. Esse homem perdeu a mulher, mas não perdeu a vontade de lutar. Ele, em outras palavras, é foda! Porque foi feito da massa daqueles que vieram de baixo. Isso é para poucos que possuem a inteligência do cara. Isso é sagacidade política. O golpe de 2016 fracassou. Não deu em nada. Repara o panorama: ele foi protagonista de sua própria prisão, não o Moro. Deu um nó em todas as vezes em que esteve diante do juiz. Ele disse para o Moro: “Doutor, se o meu processo fosse julgado pelo mérito, o senhor não o teria aceito.” Então, o que aconteceu? Agora, o TSE não teve dúvida. Teve que liberar para aparecer ele na campanha do Haddad. Quando fui premiado, fiz questão de falar dele. Fiz um discurso. Fui vaiado por parte da plateia. E disse: “Pode vaiar”. Essa foi a minha resposta.

CONTINENTE Seu posicionamento político me faz pensar no fato de que a arte e a política não podem ser dissociáveis. O artista precisa fazer valer sua posição social, independente de qual direcionamento.

OSMAR PRADO O trabalho é político. É político em essência. A arte é política, mesmo quando for de direita. Não importa a posição. É você se manifestar. Essa profissão não é somente fama e pensar em ganhar dinheiro. Eu sou oriundo de um período, de uma família que morava em um terreno nos fundos dos sobrados de classe média. Nós morávamos numa casa de quarto e cozinha. Éramos minha mãe e meu pai em um quarto dividido por um pano, de um lado a cama dos meus pais, do outro lado os três filhos. E tinha minha tia, irmã da minha mãe, que morava conosco. Ela trabalhava de empacotadora. Eu vim desse universo. Então, o ego nunca foi algo que me subiu à cabeça. Esse filme traz um pouco disso. É um filme de fé. Quando eu levei o meu pai à cena, eu me levei. E a emoção não é de efeito, é real. Por isso, mexeu com as pessoas. E mais do que nunca nós estamos precisando disso, dessa credibilidade. Na minha cabeça, eu tenho o que disse Plínio Marcos disse sobre os atores, que é o que eu vou dizer com as minhas próprias palavras. Por mais duros que sejam os corações em decorrência das lutas diárias pela sobrevivência, sempre haverá dentro de cada coração um pouco de ternura e um pouco de sensibilidade. Cabe aos atores, com o seu trabalho, com a sua sensibilidade, fazer aflorar essa ternura. Mas o ator tem que ter consciência de que tem que servir à sua personagem e não servir-se dela para brio e egos infundados. É isso. É assim que defino essa função. Muitos colegas meus, e eu não estou fazendo uma crítica, só uma observação, perderam um pouco essa referência. Muitos. Ou por analfabetismo político, por vaidade ou porque, de repente, estão ganhando muito dinheiro e ficam um pouco deslumbrados com essa coisa de sucesso. Eu tive grandes mestres. Que toda vez que eu ia para um lado, eles diziam assim: “Vem cá.” Nunca me abandonaram. Porque eu não faço política para auferir lucros. Tanto que uma colega entrou na sala ontem e disse assim: “Você mamou nas tetas da Lei Rouanet”. Eu falei: “Não, eu mamei nas tetas da minha mãe.” Nunca mamei nas tetas da Lei Rouanet, até porque não sou produtor. E todas as vezes em que eu tentei produzir, eu produzi com o meu dinheiro de ator e até que nem deu errado. Se eu não tive grandes lucros, pelo menos prejuízo não tive. Agora, o que eu quero dizer é que eu não faço política para tirar proveito. Eu faço política porque creio firmemente na possibilidade de encaminhar o país para uma sociedade mais justa, mais fraterna. Existe uma coisa que se chama fervor revolucionário e só é possível se você tiver isso.

CONTINENTE Você está otimista em relação ao futuro cenário?

OSMAR PRADO (Pensativo) Eu estou atento. Acho que, pelas últimas notícias que eu tenho, e eu costumo acompanhar também os comentários do Paulo Henrique Amorim, não deu certo o golpe. Só há duas alternativas para o conservadorismo: engolir um possível candidato progressista ou fechar. E não são poucos os militares que estão com essa vontade. Mas se fechar, define de vez. Desobedeceram a ONU e foi um tiro no pé. O Boulos é aquilo que disse o Paulo Henrique Amorim. O Boulos não é Lula, o Lula não é Boulos. O Boulos queria a resistência. O Lula queria a conciliação. Conciliação, não, a entrega. Mas eu acho que o Lula estava certo. Porque ao se entregrar de dentro da cadeia, ele se reforçou. Perante a comunidade, não só de dentro como de fora, ele continua pregando a inocência. E ao invadir o triplex, é aquilo que o Paulo Henrique disse, ele meteu um punhal nas vísceras dos golpistas e desmoralizou todos eles. Inclusive, o STF, que deu o aval – dona Raquel Dodge e dona Carmem Lúcia. E todos eles, com algumas exceções, acho que são poucas. Tanto que o TSE, o que fez? Liberou o Lula para aparecer na propaganda eleitoral em apoio a Haddad. Agora, veja bem, nós não temos que estar otimistas nem pessimistas. Temos que estar atentos aos passos e denunciar os movimentos. Nós não estamos em 1964. Estamos em 2018. Estamos com um time muito mais forte. Há a possibilidade da derrota? Há. O Haddad arrebentou quando sofreu aquele interrogatório inquisitivo no Jornal Nacional. Sentou o pau. Observe aquele momento em que ele diz não estar satisfeito, que quando a honra dele está em jogo é ele quem decide. Na Band, o Ciro peitou. “O senhor tem coragem de dizer que a Venezuela é uma democracia?” E ele respondeu: “Sim, é uma democracia. E eu, se eleito, vou estabelecer com meus vizinhos da América Latina uma relação com todos eles sem interferências, sem ingerência, nas decisões e na soberania de cada país. E nós temos que ter responsabilidade”. “E quantas pessoas já morreram lá?” E o Ciro rebateu: “E quantas já morreram aqui? E a Marielle Franco?” Aí o cara não soube responder. Nós temos que ter responsabilidade nesse momento para impedir que ocorra uma guerra civil. Temos que ter juízo. Se você joga lenha na fogueira, o que você quer? Guerra civil, entrar com a repressão e acabar com a democracia. Mas sua pergunta era outra. A questão é se eu estou otimista. Não estou. Estou apreensivo. Porque eu não sei o que vem pela frente. Mas que o golpe não deu certo, não deu. Nós fomos ao gabinete da ministra Carmem Lúcia. Fomos eu, Adolfo Esquivel e a Carol Proner. Estávamos lá. E até perguntei para ela: “Ministra, quantos cadáveres mais serão necessários para que se faça justiça? Dona Marisa? O reitor da Universidade Federal de Santa Catarina? E pergunto mais: quem tem medo de Luiz Inácio Lula da Silva? Ministra, faça valer a presunção de inocência”. Ela não disse uma palavra sequer. Ela ouviu todo mundo. Quem foi contundente com ela foi o Esquivel. Ele fez questão de dizer que estava indo para consolidar a candidatura do presidente Lula ao prêmio Nobel da Paz. Ao trancafiar o Lula, acharam que ele ia cair no esquecimento. Quer dizer que você quer matar uma coisa que não se mata. Eu disse isso: não se mata um líder. Para matar um líder, você tem que matar um povo inteiro. E isso nunca ninguém conseguiu. Nem um exército inteiro conseguiu. O Tiradentes, quando foi enforcado e esquartejado, estava selada a história dele. Hoje, você não fala do Silvério dos Reis. Você fala do Tiradentes.

CONTINENTE Você acha que a arte pode vencer o reacionarismo?

OSMAR PRADO Eu acho que a arte é uma força em si mesma. E se você, com inteligência e sensibilidade, puder fazer dela um instrumento de transformação, ela se torna ainda mais grandiosa. Não que ela seja revolucionária, mas ela é o acompanhamento das revoluções. Eu citaria Victor Jara (cantor chileno e ativista político), que estava no Chile quando aconteceu o golpe, ao lado do Salvador Allende. Victor Jara cantava como ninguém, até que veio o golpe. E esse homem foi para o estádio. Não fugiu. Foi para morrer. Ele tocou violão no estádio que se tornaria o campo de concentração de caminhões com cadáveres que sairiam de lá. São mais de 3 mil mortos do Pinochet. E ele foi ao estádio antes para tocar violão e cantar em protesto. Tiraram o violão dele e ele continuou cantando. Quebraram seus dedos e ele continuou cantando à capela. Aí o tiraram de lá e o mataram. Que força leva um cara a cantar com o dedo quebrado? Que força é essa? Isso é o que os caras não toleram. De onde vem? Emana do povo, meu amigo. Existe uma coisa que se chama fervor revolucionário e que só é possível se você tiver isso. E eu tive o privilégio de conhecer a filha de Ernesto Guevara. A filha mais velha, na casa de Adair Rocha, no Rio de Janeiro. E eu lhe disse assim, cara a cara, os olhos dela eram os olhos do pai. Eu disse assim: “As pessoas citam frases de seu pai com ‘hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás’. Eu prefiro aquela em que ele disse ‘onde quer que eu esteja, que a morte seja bem-vinda, porque outros segurarão o meu fuzil, a minha ideia”. Ela disse: “Eu pensava que meu pai era suicida. Depois eu entendi que meu pai sabia, tinha plena consciência da importância e da não importância da sua participação no processo revolucionário. Se o matassem, ele continuaria”. E de fato ele provou isso. Por ser a derradeira, ele desejava a morte, dentro das possibilidades possíveis. Foi morrer na Bolívia. Quando Benício Del Toro leu as cartas do Che, ele enlouqueceu e fez aquele filme belíssimo. Então, o que me fascina não é o Che ídolo, mito grandioso, mas Che, o homem. O que impressionou Benício Del Toro foi a maneira do Che escrever. A maneira como ele fala com os filhos. Isto é um amor que cega qualquer reacionário.

CONTINENTE Para terminar, você acha que a história fará justiça ao momento atual no Brasil?

OSMAR PRADO Eu acho que esse momento será muito discutido. Você viu o documentário O processo? É uma sucessão de coisas. É tanto material que as novas gerações terão como saber, passo a passo, o que de fato ocorreu no país, os retrocessos impostos por um governo golpista, por um governo que veio para destruir tudo aquilo que se conquistou ao longo de décadas em que se acreditou que era possível ser feliz, de fato. Talvez até quando essas coisas todas ficarem lá, realmente, como história, a gente possa avaliar o futuro. Mas eu acredito que sim, que pelo menos se tenha consciência do que de fato aconteceu nesse período. E quem estava onde, quem estava com quem… Quer dizer, onde é que você estava? Eu tive grandes embates, com pessoas queridas, inclusive. Mas, mantive-me firme. E tenho certeza que a pessoa ou as pessoas já estão um pouco caladas.

JOÃO PAULO BARRETO é jornalista, curador e crítico de cinema. Membro da Abraccine, assina o blog Película Virtual.