Para Lima Barreto

Muitos têm me perguntado como se deu, em Bruzundanga, a transição do Estado autoritário para o Estado fascista, após o momentoso pleito de 2018, e o que posso dizer é que, ainda que as mudanças tenham sido múltiplas e, em alguns casos, profundas (tentarei delinear algumas aqui), a passagem se deu de modo mais “suave” do que comumente se imagina. Convenhamos: embora contasse, como conta ainda, com belas paisagens, praias, uma gente geralmente alegre, descontraída, e uma cultura popular efervescente e sedutora (com destaque para a música), a Bruzundanga nunca foi exatamente um Eldorado tropical. Comandada por uma elite xucra, de poucas luzes e avessa à compaixão, a nação era marcada por uma desigualdade brutal — de renda e de tudo o que significasse bem-estar — e nela a violência, em suas variadas formas, sobressaindo-se o homicídio, grassava como uma epidemia. Desiludidos com as fantasias democráticas, seus próprios habitantes costumavam afirmar, com amarga ironia, que ali “manda quem pode e obedece quem tem juízo” — frase que, em face da desfaçatez exibida pelo Judiciário em tempos recentes, havia sido atualizada para “manda quem pode e desobedece quem tem juízes”.

De resto, vale lembrar que “autoritário” e “fascista” são adjetivos que habitam o mesmo campo semântico, sendo aquele um traço deste, ou ainda, como a História recente de Bruzundanga demonstrou, um seu prenúncio. Assim, em síntese (sei que vocês anseiam por um resumo), o pleito de 2018 deu à luz um regime baseado no dístico “Pátria e Família”, em que as Forças Armadas e as igrejas cristãs ocupavam um lugar central na gestão do Estado. Com efeito, a nova bandeira do país, bastante semelhante à predecessora, trazia em seu centro o brasão do Estado Maior das Forças Armadas encimado, num bonito desenho, pela coroa de espinhos de Jesus Cristo. Isso tampouco foi uma mudança abrupta: a Constituição anterior do país já trazia referências a Deus, crucifixos abundavam em repartições públicas, as igrejas contavam com privilégios e militares e líderes religiosos ocupavam postos de destaque e influência na administração da república. Neste caso como em muitos outros, a mudança foi sobretudo de intensidade.

O baronato da mídia e das finanças, que apoiara a eleição do novo presidente (um militar reformado recém-convertido ao protestantismo) sob o pretexto de “evitar o caos”, de início torceu o nariz para essa nova configuração, temendo interferências excessivas do Estado na economia e na vida privada dos cidadãos. Porém, ao se convencer de que a restauração da autoridade governamental abria perspectivas favoráveis para os negócios, reduzindo as sempre indesejáveis incertezas, e que o novo regime tinha razões consistentes para manter intocados os velhos privilégios, essa classe enxuta e bastante homogênea aderiu ao lema “Pátria e Família” com indisfarçável entusiasmo. “Enquanto a Bolsa estiver subindo e o dindin caindo no meu bolso, meu amigo… eu quero é que o resto se exploda!”, disse-me, quase nesses termos, um jovem consultor financeiro.

Um parêntese sobre a economia. O novo regime adotou, de saída, um programa de ajuste das contas públicas, centrado na ideia, não exatamente original, de “austeridade”, que agradou em cheio os investidores. O fechamento do Congresso para “recesso” — que de início seria de seis meses, mas agradou tanto a opinião pública que se prolongou por mais de dois anos — foi o primeiro ato do novo regime a simbolizar que a “farra” havia acabado. Criticado internacionalmente nos primeiros meses, o gesto simbolizava contenção de despesas (embora essa conta seja duvidosa, pois foram criadas novas estruturas para abrigar aliados desalojados) e otimização das tomadas de decisões. Como efeito dessa e de outras decisões convidativas (por exemplo, os leilões de estatais), o investimento estrangeiro voltou a afluir ao país, a tal ponto que o Banco Central precisou intervir para manter a estabilidade da nova moeda, o Duque. Em pouco tempo, a Bruzundanga conseguia melhorar a relação dívida/PIB e reduzir o problema do desemprego. É verdade que, seguindo tendência iniciada já no regime anterior, as novas relações de trabalho eram ainda mais desfavoráveis para o trabalhador do que sempre haviam sido, e a aposentadoria, por exemplo, passara a ser um privilégio inalcançável para a maioria, mas o fato é que difundia-se um alto grau de contentamento com a queda da taxa de desocupação, decisiva para a elevada popularidade do novo regime.

Quanto aos trabalhadores, cabe destacar que as greves foram proibidas e os sindicatos, todos, suprimidos e substituídos por órgão consultivos, que mantinham o governo informado sobre o desempenho e as demandas das respectivas categorias (evidentemente, condutas individuais consideradas inconvenientes também eram reportadas). Assim era que o governo e as entidades patronais ofereciam de tempos em tempos bônus e outros benefícios para as categorias de trabalhadores que apresentavam os melhores indicadores de desempenho, tanto do ponto de vista da produtividade quanto daquilo que era definido como “retidão moral” e “amor à pátria”. Essa era uma medida muito popular, bem como as celebrações do 1º de maio, que contavam com shows, gincanas e desfile militar.

Uma palavra sobre política. Ainda que tenha fechado o Congresso e suprimido os partidos, e em que pese a retórica inflamada do presidente, o novo regime não agiu com brutalidade, num primeiro momento, em relação aos dissidentes. Como já ocorria no regime anterior, as prisões e perseguições, embora com alvo político específico, se deram por iniciativa do Poder Judiciário e adjacências, e costumavam basear-se no estrito cumprimento da lei, seguindo os ritos previstos, conquanto tenha havido, aqui e ali, dúvidas e questionamentos.

Por decreto presidencial, o mandato do chefe de Estado foi estendido de 4 para 6 seis anos, podendo ser renovado mediante consulta ao Conselho de Estado — constituído, entre outros, pelos comandantes das três Forças e os líderes das principais congregações cristãs.

A liberdade de expressão passara a ser tutelada, como era de se esperar, e quem transgredia as normas sujeitava-se a advertências, sanções administrativas, multas e até prisão, conforme o caso. Claro que, em face da elevada difusão da internet — os bruzundanguenses figuravam e figuram ainda entre os principais usuários de redes sociais, em todo o mundo –, e não desejando provocar insatisfação generalizada, o governo teve que adotar uma certa dose de tolerância, focando a repressão no que identificava como incentivos à “libertinagem” e ameaças à segurança nacional. Respeitados os limites, que logo se tornaram auto-impostos, a imprensa passou a funcionar de modo semelhante ao de outrora, e o humor, arte em que os alegres bruzundanguenses são pródigos, prosperou com certa liberdade. Fez sucesso o quadro de um programa televisivo em que um humorista talentoso parodiava o presidente, imitando sua dicção característica. De início abespinhado com aquela gozação inofensiva, o mandatário logo passou a achar graça da imitação, e declarava, com boa dose de simpatia, que tinha o costume de assistir ao programa em família, rindo de si mesmo.

Como vocês sabem, além do abismo de classes que sempre fôra seu traço distintivo, um pilar da sua formação, a Bruzundanga também era conhecida pelas diversas formas de preconceito que oprimiam negros, índios, mulheres e homossexuais. Isso não mudou no novo regime, mas adquiriu novas formas, acentuando-se de modo geral. Contudo, o capitão-presidente teve a esperteza de nomear para postos de comando algumas mulheres (inclusive uma ministra abertamente gay) e negros.

No tocante às mulheres, foram promulgadas novas leis, que no conjunto configuraram o que se convencionou chamar de “estatuto da mulher honesta”. Em síntese, o que se buscava era traçar uma distinção entre as mulheres casadas, especialmente aquelas que haviam contraído matrimônio em igrejas cristãs, e que possuíam filhos, e as demais mulheres. O aborto foi banido em qualquer circunstância e as penas para quem descumprisse a lei, ampliadas. O adultério voltou ao Código Penal, sendo estabelecidas punições mais severas para as esposas que para os maridos (porém, nenhuma particularmente dura: no pior dos casos, aplicava-se pena de três meses de prisão — em regime semi-aberto para mulheres com filhos). No rastro do ajuste econômico, foram extintas, em todo o país, as Delegacias da Mulher. Criaram-se incentivos para as mulheres que desejassem deixar o mercado de trabalho para se dedicar integralmente à família, bem como obstáculos legais para que ocupassem cargos de chefia. Coerentemente com esse objetivo, foram abolidos os incentivos para mulheres ingressarem na política. Os agrupamentos de mulheres não foram totalmente suprimidos, mas estabeleceram-se empecilhos para sua criação: as organizações precisavam ter autorização prévia do governo, e para isso haviam de comprovar a total ausência de finalidade política, ou de quaisquer objetivos que atentassem contra o lema “Pátria e Família”. Assim, enquanto todos os coletivos feministas foram postos na clandestinidade, aos menos duas organizações femininas alcançaram cifras impressionantes: “Assembleia das Esposas com Cristo” e “Mulheres Unidas Contra a Poliomelite”.

No que se refere às prostitutas, foi promulgada uma mudança na legislação trabalhista extinguindo o reconhecimento da categoria de profissional do sexo. Além disso, a exemplo de outros países, estabeleceu-se que elas só poderiam atuar num raio de 3, 5 ou 10 quilômetros de distância do centro da cidade, conforme o tamanho do município. Não obstante, consta que a prostituição de luxo continuou funcionando como antes, em que pese a proibição de anúncios oferecendo o serviço.

Por fim, foi exarado um código de vestimenta para mulheres, a ser observado em igrejas, instituições financeiras e edifícios públicos, em sinal de respeito: exigia-se agora cabelo preso, saias cobrindo os joelhos e decotes inexistentes ou “discretos”.

Proibiu-se o casamento entre pessoas do mesmo sexo e as cirurgias de mudança de sexo. Demonstrações homoafetivas em público passaram a configurar contravenção leve, com aumento da pena em caso de reincidência. Entre outras restrições, pessoas LGBT passaram a ser proibidas, por exemplo, de: doar sangue, trabalhar em UTI neonatal, trabalhar em instituição de ensino fundamental, frequentar piscinas públicas, conduzir motocicletas de mais de 125 cilindradas e caminhões de mais de 4 eixos, bem como pilotar aeronaves com mais de dois passageiros. A adoção de crianças por casais gays ficava restrita aos casos de crianças com doenças sem perspectiva de cura, após ao menos uma desistência. Fora isso, todas as pessoas homossexuais (sob pena da lei, passava a ser mandatório informar a orientação sexual ao Estado) estavam obrigadas a se submeter ao menos uma vez por ano a exame de hemograma completo e, conforme a orientação médica, teste de sanidade mental.

Quanto aos índios, o novo regime proibiu novas demarcações de terras e passou, com uso do Exército e da Polícia Federal (os novos responsáveis pelas políticas de “apoio ao índio”), a “desapropriar” terras indígenas, indenizando seus moradores. As indenizações correspondiam à extensão das terras e ao seu potencial econômico, o que gerou contrastes gritantes: enquanto algumas tribos, sem muito o que oferecer, passaram a viver precariamente em palafitas ou nas favelas dos grandes centros, outras foram remuneradas de modo quase razoável por suas terras ricas em nióbio e outros minerais, e passaram a viver com certo conforto material, embora alijadas de sua terra-mãe. Consta que houve resistência a esse escambo por parte de algumas lideranças, mas estas desapareceram sem deixar vestígios, de modo que eu não saberia dizer o seu paradeiro. Artistas de Hollywood desembarcaram em Bruzundanga para protestar e cobrar respostas: foram detidos e deportados.

À parte isso, o índio ganhou destaque como símbolo nacional: o Dia do Índio foi transformado em Semana do Índio, com intensa participação das escolas, e imagens de rostos, pinturas e artefatos indígenas tornaram-se presença frequente em cédulas, moedas e na publicidade estatal. Os palácios da presidência e da vice-presidência da república foram rebatizados, respectivamente, de Peri e Ceci. Àqueles que permaneciam vivendo em tribos foi oferecida educação evangelizadora e profissionalizante, e em poucos anos o número de índios que ainda dominavam suas línguas de origem caiu sensivelmente. Os dados sobre suicídios são defasados e inconfiáveis, mas comenta-se que a prática se tornou comum entre esses povos.

Agora, religião. Embora a Bruzundanga tenha deixado oficialmente de ser uma nação laica e se tornado um Estado católico-protestante, a diversidade religiosa foi, no geral, respeitada, com destaque para o judaísmo, que já cultivava uma relação fraterna com algumas igrejas evangélicas. O caso foi diferente com as religiões de matriz africana, as quais, sob diversos pretextos, passaram a contar com a má-vontade das autoridades estatais e enfrentar dificuldades para manter seus cultos. Seja pelo uso de velas, de alimentos ou de tambores (embora elementos semelhantes constassem dos ritos de outras religiões), terreiros de umbanda, macumba e candomblé passaram a ser alvos de constantes investidas de órgãos como Corpo de Bombeiros, Vigilância Sanitária e quejandos, que chegaram mesmo a interditar alguns desses locais de culto e ordenar sua remoção para áreas mais distantes dos centros urbanos. Líderes religiosos foram detidos por desacato ou suspeita de fraude, em circunstâncias nunca devidamente esclarecidas.

A educação foi um dos setores que mais receberam a atenção do novo regime, e passou por profunda transformação. Assim como ocorrera na França, na nova ordem o ensino religioso foi priorizado (especialmente na forma de recursos privados e estatais), e as escolas pertencentes a congregações cristãs tornaram-se, em pouco tempo, verdadeiros centros de excelência. Foi incentivada a separação entre os sexos, por estabelecimento ou por turnos; além disso, foi vetada a prática, por meninas, de atividades consideradas “masculinas” (como o futebol) e os meninos, por sua vez, ficaram proibidos de se engajar em atividades “femininas” (como dança).

O currículo foi todo reformulado, buscando-se extirpar influências identificáveis como de origem marxista, bem como, no sentido contrário, reforçar os valores tradicionais da família, da fé cristã, da disciplina e do empreendedorismo. As universidades públicas tornaram-se parcerias público-privadas e passaram a cobrar mensalidade, podendo os alunos de baixa renda obter créditos ou descontos. No novo modelo, como explicitou o pastor que assumira o Ministério da Educação, a universidade passava a focar numa maior “utilidade”, voltando-se para a “produtividade” do conhecimento, evitando se enfronhar em “especulações vazias” e “debates estéreis”, embora sem perder de vista o cultivo dos saberes e valores que “nos fazem verdadeiramente humanos”.

Haveria muito mais a contar, sobre este tópico em particular e sobre a nova realidade vivida pela Bruzundanga após o pleito de 2018 — que, como vemos, não era tão nova assim. Mas isso ficará para uma próxima oportunidade.

Pedro Amaral