por: Dermeval Netto
documentarista, professor e crítico
Uma profusão de filmes documentários vêm ocupando nosso circuito de exibição. Um dos mais esperados, Bergman 100 Anos, produção sueca dirigida por Jane Magnusson, lançada em Cannes este ano com o título Um Ano em Uma Vida, estreou em julho, comemorando o centenário do diretor de Persona, O Sétimo Selo, Morangos Silvestres, Face a Face, Cenas de Um Casamento, Gritos e Sussurros, Fanny e Alexander, e tantos outros clássicos da sétima arte. A obra de um dos mais brilhantes cineastas de todos os tempos fazia por merecer a grande homenagem, feita pelo próprio cinema. Mas o que assistimos deixa muito a desejar enquanto estrutura narrativa — Bergman enquadrado e simplificado, num tratamento que não só achata o diretor como banaliza a interpretação de seus filmes.
Os filmes documentários, desde sua origem, se espalham e se dividem em vários formatos e estilos. São muitas as teorias que organizam e classificam esse gênero cinematográfico. Uma das tipificações mais conhecidas é a do escritor, professor e teórico norte americano Bill Nichols, que elaborou conceituações sobre documentários nos modos expositivo, poético, observativo, participativo, reflexivo, entre outros. E entre as diferenças temáticas, no que é o objeto de um filme, encontramos sub gêneros, onde um deles é o documentário biográfico. Nos últimos anos vêm predominando as biografias, que se multiplicam nas telas em todo o mundo, com ênfase acentuada na vida e obra de artistas criadores, nos diversos campos da arte. Prevalece também o modo expositivo de narrar, que conjuga entrevistas e sequências de textos off de narrador superpostos às imagens, com a função de comentar, descrever e interpretar o que se vê. O que se aplica integralmente ao filme Bergman 100 Anos.
Há muitas formas para definir o que é o filme documentário, que ampliam e inovam na compreensão deste que é identificado como o cinema do real. Mas há uma questão essencial que se impõe para os que buscam documentar vida e obra de um artista: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Vida e arte se articulam, se interpenetram, se referenciam, mas a arte guarda sua autonomia de expressão e invenção, sua identidade se constrói no plano do simbólico, e não deve ser interpretada como mero reflexo da vida e das possiveis idiossincrasias de seu criador. Muitos foram os autores que se debruçaram sobre questões da autonomia da arte, desde Kant, passando por Lukács, Bergson, Marcuse e Walter Benjamin, entre outros. Este princípio cai por terra no filme sobre Ingmar Bergman. O que assistimos é uma inacreditável sucessão de análises primárias sobre a obra de um grande mestre, reduzida à mera transposição das angústias, memórias, medos, bravatas, neuroses e até psicoses do cineasta. A inconsistência desse ângulo de abordagem afunda no erro de ver a arte apenas como reprodução, espelho ou retrato de vivências de seu autor. Chega a ser patética em alguns momentos a aplicação mecânica de traços, comportamentos e esquisitices de Bergman aos personagens e histórias de seus filmes. Nessa linha de visão, não sobra nada nos filmes a não ser projeções de sua personalidade, quase sempre tratada como doentia, onde tudo é mera expressão de sua vida.
Partindo da referência ao ano de 1957, um dos mais significativos na produção de Bergman, tanto no cinema, como na tv e no teatro, e tb ano onde ganhou muitos prêmios, o filme se estende por toda sua carreira, apontando situações de seu percurso pessoal e enquanto cineasta, e como essas estão transpostas em seus filmes. Dessa forma, as duas mulheres personagens de Persona não passam de uma tradução do autor e seus conflitos. Pelo menos é o que passamos a saber, ao rever as personagens de Liv Ullmann e Bibi Andersson em seu relacionamento conturbado, erótico, filmado nas praias da ilha Faro. No início do filme, na composição de imagens das duas em um mesmo plano, com o rosto duplo, estariam as duas metades de Bergman. Não só elas, mas também o velho professor de Morangos Silvestres, na pele do veterano cineasta Victor Sjöström, personagem em busca da redenção, atado a pesadelos e memórias de seu passado, nada mais seria do que a reprodução do próprio Bergman em delírio autocrático e melancólico. A sombria figura da morte, na Suécia medieval de O Sétimo Selo, desafiada a um jogo de xadrez pelo cavaleiro, personagem de Max Von Sydow, é apenas Bergman tentando exorcizar seu medo da morte. Em Fanny e Alexander, mergulho profundo e poético no universo da infância, o menino e também a menina são vistos como a representação de Bergman criança, oprimido e violentado pelo pai, aqui edificado na figura do padrasto, o bispo malvado vivido pelo ator Jan Malmsjö, a cometer as piores perversidades com os dois irmãos. E nessa linha, esses e outros filmes, esses e outros personagens, sucessivamente, nos são trazidos, exibidos em suas cenas virtuosas e deslumbrantes, mas aprisionados numa quase aula de psicologismos inconsistentes a simplificar e reduzir a obra do genial Bergman a surtos, paranóias e feridas de um autor que faz cinema para imprimir nele sua prepotência bem como suas fragilidades e debilidades. Não bastasse esse olhar míope sobre o universo bergmaniano, são apresentados depoimentos e entrevistas com parentes, ex-atores e ex-membros de equipes técnicas de filmagens e de montagens teatrais para testemunhar de forma ressentida sobre atos e comportamentos egoístas, autoritários e quase psicóticos do diretor, buscando identificar neles a matéria prima de sua invenção.
Bergman 100 Anos é um filme documentário que abusa do ponto de vista que conjuga vida e obra do autor como sendo uma o resultado da outra. Na contra mão de conceitos sólidos que conferem à arte a liberdade e a autonomia em relação a seus criadores.
Da diretora, registro trecho de sua entrevista publicada no jornal Estado de S. Paulo, em 11.7: “Não foi para desmistificar, mas para mostrar que era humano”. Mais tosco, impossível.
Bergman visitou, em seus filmes, territórios da alma, do sentimento, da paixão, da crise, da solidão, da dor e da fantasia, que não são explicaveis pela didática pobre, pseudo psicologizante, burocrática, e pouco inspirada do documentário que lhe faz essa suposta homenagem, no seu centenário de vida. Suas imagens, na sua arquitetura e sua trama, belas e fortes, épicas ou líricas, suaves ou dramáticas ou até assustadoras, nos contrastes e nuances do preto e branco ou na explosão da paleta de cores do branco ao vermelho, compõem um painel estético primoroso que poucos artistas jamais conseguiram conceber. No documentário, lá estão muitas delas, primorosas, selvagens, duras, sensuais, amorosas e enigmáticas, de toda uma cinematografia, autônomas e rebeldes, a desprezar a nomeação e a subordinação a que foram submetidas. E ótimas também são as cenas de filmagens e entrevistas recuperadas do diretor, incluídas no filme. O que deveria bastar ao documentário, que indo além, se perdeu na banalidade, na impossivel e inútil pretensão de explicar o cinema desse grande mestre no cálculo exato entre obra e biografia.
Mas entre perdas e danos, a magia do cinema prevalece. Em sua última imagem, sem retoques off e após uma declaração de Bergman, o documentário nos brinda com um dos planos fechados mais belos do cinema, o rosto impassivel ao vento de Victor Sjöström, a contemplar o horizonte, no vislumbre de toda uma história de vida, cena final de Morangos Silvestres. Ali todo o brilho, o fascinio e o mistério, insondável, inalcançavel, admiravel, do cinema de Ingmar Bergman.