Quando as autoridades perceberam, o meio circulante já estava infestado pelo dinheiro falso. Eram notas imitadas com tanta perfeição, que os próprios técnicos do governo não conseguiam separá-las. Foi preciso então introduzir novos padrões, cuja conferência escapava aos meios normalmente disponíveis. Para saber se uma nota era falsa não bastava olhá-la ao sol, ou tateá-la. Como isso era possível apenas com aparelhos especiais, a palavra final dependia sempre do próprio governo. Isso gerou a indiferença das pessoas, sua descrença.

Mesmo havendo tomado essa providência, entretanto, passado algum tempo, as autoridades descobriram ser falsa grande parte do dinheiro em circulação. Não se sabe como, alguém havia descoberto a chave do novo padrão. A partir daí, desistiu-se de combater a fraude, e, sendo impossível distinguir o que era autêntico e o que era falso, passou-se a aceitar um e outro. Donde se levantarem algumas hipóteses: a) os moedeiros falsos estavam dentro do próprio governo; b) não havia como diferenciar os governantes dos falsários; c) o governo era a face visível do criptogoverno.

Anunciou-se, um dia, que podiam ser falsas todas as notícias que tinham sido divulgadas quanto à falsificação do dinheiro. Em outras palavras: assim como havia – ou podia haver – uma fábrica de dinheiro falso, havia – ou podia haver – uma fábrica de notícias falsas.

Acontece que fabricar notícias era mais grave do que fabricar dinheiro, porque, se havia uma única fonte produtora de dinheiro, havia inúmeras fontes de noticias. Enquanto o dinheiro nós trocamos por bens, as notícias nós consumimos, de modo que se integram ao que pensamos, ao que somos, ao que fazemos. E não temos como identificar as notícias falsas, assim como não tínhamos como identificar a moeda falsa. As pessoas, então, passaram-se a guiar pelas aparências.

Como nem os economistas, nem os comunicadores, nem os políticos, conseguiam resolver esse problema, foram convocados os filósofos. Um deles disse: não há verdade ou falsidade nas coisas, apenas nas proposições. Somente proposições – por exemplo: “esta nota é autêntica” – podem ser verdadeiras ou falsas. Mas outros disseram: “a proposição ‘esta nota y é autêntica’ somente é verdadeira quando a nota y for realmente autêntica”.

Continuando o impasse, chamou-se para resolvê-lo o judiciário, que decidiu assim: somente são autênticas as cédulas que eu disser que são autênticas, e somente são verdadeiras as notícias que eu disser que são verdadeiras.

O cúmulo dos horrores chegou quando se percebeu que, além do dinheiro e das notícias, também as palavras podiam ser falseadas. E de nada serviam os dicionários. Não fôra o próprio  Shakespeare a perguntar sobre o que há numa rosa? De modo que, se podíamos chamar uma rosa de legume, e um legume de rosa, estava instaurado o caos linguístico.

Por causa disso, jogaram-se no lixo bibliotecas inteiras. Fecharam-se as livrarias e as escolas. Abandonadas pela razão, as pessoas emudeceram. E os falsários resultaram soberanos.

Só aí se percebeu que a moeda, o governo, as comunicações, a linguagem, são fruto de um acordo. De modo que, rompido o acordo, instaura-se a desordem.

Mas era tarde. Porque as pessoas já estavam se comunicando por grunhidos, e, nas suas costas, cantava o cacete.

Sérgio Sérvulo da Cunha