por: Sérgio Sérvulo

Alguém, outro dia, cansado de ler meus textos, e incomodado pelo que escrevo, mandou-me dizer que não sou imparcial, porque penso segundo o “modelo socialista”.

Pois bem, façamos hoje um exercício segundo o modelo do mercado.

Não sei quantos apartamentos desalugados existem na cidade de São Paulo. São, certamente, milhares.

Milhares de apartamentos que, em circunstâncias normais, deveriam estar fornecendo renda aos seus proprietários. Há muita gente de classe média que sonhou com um reforço na aposentadoria, e investiu as economias em imóveis. Muitos são viúvos, ou viúvas. Poderiam, talvez, ser chamados de rentistas, mas não fazem parte do pequeno grupo que vive de juros. Com a crise, têm um mico nas mãos.

São tantos os apartamentos desalugados, em São Paulo, que abrigariam todos os sem-teto da cidade, mais a sua descendência. Mas os sem-teto são desempregados, não têm parentes que os socorram nessa situação difícil, não ganham o bastante para pagar aluguel, despesas de condomínio, água e luz. E não têm fiador.

Essas pessoas precisam morar em São Paulo. Porque, aí, estão os bicos e os trambiques que usam para sobreviver. Não fosse assim, estariam numa dessas cidadezinhas onde ainda há tranquilidade, espaço, e até um lugar decente para morar.

Temos então, de um lado, milhares de apartamentos desocupados, cujos proprietários gostariam de receber, com eles, alguma renda. E, de outro lado, milhares de pessoas sem emprego e sem renda. Mas que podem, pelo visto, pagar uma exorbitância pelo espaço que alguém lhes garante num edifício abandonado, aparentemente sem dono.

Esqueçamos de quão odioso é esse quadro, injustificável por qualquer lei, teoria, mecanismo ou propósito. Parece possível achar uma fórmula que aproxime, daquele que precisa de moradia para morar, aquele que tem moradia para oferecer. O mediador seria o poder público, no cumprimento de um dever de que não se costuma falar: propiciar moradia a quem não tem (constituiçãozinha brasileira, art. 6º).

Suponhamos que o prefeito de São Paulo fizesse isso. Não só a cidade, os donos de apartamento e os sem-teto teriam muito a lhe agradecer. O governador do Estado e o presidente da República lhe seriam gratos, porque ficariam liberados muitos desses imóveis que eles querem vender para fazer caixa.

O incêndio, e a queda de um edifício ocupado por sem-teto, é uma tragédia que pode e merece ser discutida sob muitos pontos de vista: podemos chorar os mortos; registrar os gestos de heroísmo; lastimar o que deixou de ser feito, a seu tempo. Mas, o melhor, seria evitar que isso se repita.

Acontece que um delegado de polícia, ansioso por cumprir o seu dever, resolveu punir os exploradores que alugavam espaço aos sem-teto.

Não é preciso imaginação para que um delegado de polícia encontre o que fazer. O Brasil é um dos países do mundo em que ocorrem mais homicídios. E, segundo ouço, apenas 3% deles são apurados. Isto significa que 97% dos inquéritos não são abertos, ou, quando abertos, após algum tempo são arquivados. O que dá uma pilha de papel maior do que esse prédio que caiu.

Digamos que fosse ilícito alugar aqueles espaços. Digamos que fosse crime. Se não fosse, sempre seria possível inventar um tipo penal novo. Afinal, estamos falando de apartamentos e de marginais.

Me arrependo de, há muitos anos, não haver escrito, como planejava, um livro que seria intitulado “O culto à histeria”. Meu projeto era analisar, sob o ponto de vista psicológico, as novelas da Globo. Como dificilmente encontramos, nos dicionários, uma definição satisfatória de histeria, acho que a podemos caracterizar assim: é o tipo de comportamento em que o sujeito acaba agindo contra os seus interesses. O histérico é um náufrago que se debate desesperadamente, incapaz de dar duas braçadas até a boia à sua frente.

O sinônimo social de histeria é pânico. Quem sabe estamos colhendo o que plantamos?