por: Roberto Amaral

Postado na Carta Capital on line dia 27/12/2013

“Quando Eliana Calmon, corregedora do Conselho Nacional de Justiça, resolveu, meses atrás, declarar em alto e bom som que ‘havia bandidos escondidos atrás da toga’, não foi, evidentemente, uma ação tresloucada, obra de rompante ou mera indignação. Foi, isto sim, parte de uma estratégia bem urdida para tentar deter o avanço das ações contra a competência originária do CNJ para iniciar e conduzir investigações disciplinares de magistrados em geral.”

                                                                                                                 Carlos Augusto Vieira da Costa, procurador

O João Pedro Stédile, um dos mais importantes brasileiros da história contemporânea, e seus e meus amigos do MST – o único fato novo no movimento social brasileiro, nos ensinava o mestre Celso Furtado – haverão de perdoar-me: hoje, como há muito tempo, a reforma do Judiciário é mais importante do que a reforma agrária, impatrioticamente adiada, faz século, pelas classes dominantes brasileiras. Destas, o mínimo que se pode dizer é que são alienadas (e alienadoras de nosso futuro), desvinculadas de qualquer ordem de projeto nacional. A reforma do Judiciário é imprescindível na construção de um Estado democrático, e inadiável, até por que, sem ela, não teremos reforma agrária alguma. Pois um Judiciário conservador como o nosso não pode admitir o processo de democratização do campo, entendendo-o como necessidade econômica e política, ou seja, como instrumento de justiça social.

Comecemos pelo fundamental, ao lembrar que o Poder Judiciário, como está estruturado em nosso país, é uma projeção monárquica em Estado republicano, pois a República é incompatível com a vitaliciedade, a irresponsabilidade (no estrito sentido jurídico-político), a sucessão hereditária e o nepotismo, que muitas vezes orientam a constituição de nossas Cortes e a composição dos gabinetes de nossos julgadores.

A vitaliciedade é anacronismo constitucional injustificável do único Poder da República não diretamente subordinado à soberania popular, a qual exige mandatos certos para os titulares do Executivo e do Legislativo. Todos os atos do Executivo são permanentemente apreciados pelo respectivo Legislativo e absolutamente expostos, eviscerados mesmo, como deve ser numa democracia que se preze, por uma imprensa absolutamente livre. E ambos são julgados de forma irrecorrível pelo tribunal da soberania popular, as eleições, fonte de suas legitimidades. Trocando em miúdos: são legítimos, ou seja, legitimados pelo voto, e são transparentes, ou seja, abertos ao julgamento de toda a sociedade.  Podem e devem ser ainda mais transparentes, mas esta não é a questão.

Há outra distinção de caráter apartando do Judiciário os poderes Executivo e Legislativo. Estes têm seus atos julgados por aquele, e por eles respondem, tanto no plano civil quanto no criminal, podendo seus agentes conhecer as mais variadas penas, desde a indisponibilidade de bens e a multa à cassação de mandatos, como também aquela que me parece a mais grave na República democrática. Refiro-me à decretação da inelegibilidade.

Os membros do Judiciário, por seus atos, são inatingíveis pelos demais poderes, embora, sem mandato da soberania popular, possam cassar – e como cassam! – mandatos eleitorais. Julgam-se a si mesmos e, quando as evidências impedem a impunidade, ‘condenam’ o colega com o prêmio da aposentadoria integral, independentemente do tempo de ofício. A isto se chama corporativismo.

A pior tragédia da democracia é a convivência com uma Justiça que não julga, fonte de todas as injustiças, e a primeira delas é negar ao cidadão a proteção jurisdicional de seu direito. Uma Justiça assim promove a injustiça e fabrica a impunidade, o vírus que protege o poderoso e contamina o tecido social com a violência.

Se, dos advogados, em proveito da celeridade processual, são exigidos prazos irrecorríveis, cujo desrespeito pode impor à causa que representam lesão insanável (como a perda de recursos e apelações), os juízes, em todas as instâncias, e como regra, não cumprem os seus, e não há força que os chame à disciplina. Um velho professor meu, resumindo a falência do sistema, dizia a seus alunos que ‘o pior acordo é melhor do que a melhor causa’, assim desde cedo ensinando aos futuros advogados que ‘negociar’ é melhor do que judicar.

Num país cuja Justiça não julga, e no qual os juízes, inclusive os dos tribunais superiores, se dizem abarrotados de processos, o poder judiciário se declara em ‘férias coletivas’ que consomem parte de dezembro e todo o mês de janeiro, privilégio negado aos comuns mortais ao qual se somam as justas férias individuais, as licenças-prêmio e mais isso e mais aquilo.

O mau exemplo vem de cima, pois o STF (como os demais tribunais superiores) não se reúne, no ano, mais do que durante nove meses, pois seus membros gozam de férias coletivas entre 2 e 31 de janeiro (a que se soma o ‘recesso de Natal’ que normalmente começa no dia 15 de dezembro) e entre 2 e 31 de julho. E durante o ano judiciário sobrante os ministros ainda viajam, participam de congressos e palestras no país e no exterior, sem serem substituídos, prejudicando, além do julgamento dos processos ao encargo de cada um, as reuniões do Pleno. Aliás, uma das características dos nossos tribunais é a ausência, nos julgamentos, da apreciação do direito, isto é, do mérito das questões. O debate é puramente adjetivo.

Discute-se até à exaustão, e tão-somente, se o recurso tal é ordinário ou extraordinário, se o caso é de recurso ou apelação, se o prazo recursal é de x ou y dias, se a instância competente é essa ou aquela, e tudo isso com a maior solenidade e circunspecção e algum entusiasmo, pompa e circunstância. Este mal é sem remédio, mas muitas das deficiências nossas seriam consertadas limitando o legislador a dez anos o exercício da judicatura nos tribunais em todas as instâncias e proibindo as ‘férias coletivas’. Poder de férias! Já basta o mau exemplo do inefável Legislativo.

Há ainda um problema sobrevivente, conhecidíssimo por quem advoga ou já advogou em Brasília. Refiro-me ao fato de ministros mal saídos de seus mandatos passarem a atuar em escritórios de advocacia com interesses nos tribunais de origem, o que se soma à imprudência de jovens advogados atuarem em tribunais onde seus pais e outros parentes ainda são ministros.

Essas considerações são estimuladas pelo noticiário da imprensa, dando conta do conflito da Associação dos Magistrados Brasileiros e, mais grave ainda, do STF, com o Conselho Nacional de Justiça, de especial contra sua corregedora, Eliana Calmon, ameaçada, até, de processo, por defender, em suas palavras, a ‘sobrevivência do CNJ com autonomia’. Estranhamente, numa atitude que para a corregedora deriva de um ‘corporativismo lamentável’, o STF concedeu duas liminares, no último dia de trabalho deste moribundo 2011, esvaziando os poderes do CNJ. Uma liminar suspende a apuração de irregularidades cometidas por magistrados e outra, que assim a completa, proíbe a quebra de sigilos bancário e fiscal de juízes. É uma pá-de-cal na tentativa da sociedade de instituir a necessária fiscalização externa do Poder Judiciário.

As recentes decisões monocráticas de ministros do STF, respaldadas por nota de seu presidente, são sumamente graves, pois arranham o prestígio e a credibilidade da Justiça ao comprometerem o respeito que precisa merecer a mais alta Corte do País.

Nada pior para a democracia do que uma justiça desacreditada.