13por: Sérvulo da Cunha

A propósito da ordem de soltura de Lula, e de seu descumprimento, a presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministra Laurita Vaz, teria declarado que se instaurou um “tumulto processual sem precedentes na história do Direito brasileiro”.

É verdade. Jamais se ouviu dizer, na história do Brasil, que a decisão de um juiz tivesse sido tão achincalhada, tão enxovalhada, e publicamente desautorizada, quanto a do desembargador Favreto.

Ao postar-se ao lado do juiz Moro, e dos desembargadores Gebran e Thompson Flores, que impediram o cumprimento dessa decisão, acoimando-a de ilegal, a ministra fez-me lembrar o coronel Job Lorena de Santana, que presidiu o inquérito policial-militar aberto para apurar a explosão ocorrida, em 30 de abril de 1981, no Rio Centro. Na conclusão do inquérito, o coronel considerou vítimas os dois militares mortos na tentativa do atentado que, por pouco, deixaram de perpetrar. Lembrei-me disso porque, assim como a bomba do Rio Centro explodiu no colo do sub-oficial que a carregava, a decisão do desembargador Favreto explodiu no colo de Moro, Gebran e Thompson, expondo-lhes as entranhas.

Não é difícil demonstrar isso. Basta invocar alguns dogmas jurídicos. O primeiro deles: à semelhança de outros agentes políticos – como o presidente, o governador, o prefeito – o juiz, no exercício de sua atividade funcional, não está subordinado à autoridade de ninguém. É um, e um só, o caso de falência de suas decisões: sua reforma, mediante recurso dirigido, pelas partes, ao tribunal competente.

Esse tema – o descumprimento da decisão ilegal – para a magistratura sempre foi tabu. O motivo é óbvio: sua admissão solaparia a autoridade do juiz, e criaria uma quase intransponível dificuldade prática: como colocar, acima do seu juízo técnico, o juízo subjetivo de um leigo?

Quando, em texto doutrinário publicado em 1996, eu disse que a decisão manifestamente ilegal pode ser descumprida, e em alguns casos deve ser descumprida, quase apanhei. E nunca mais vi alguém tocar nesse assunto.

Dois tipos de pessoas – e apenas dois tipos de pessoas – podem descumprir a decisão flagrantemente ilegal: a parte prejudicada, e o agente encarregado de executá-la (policial, oficial de justiça, carcereiro). Este deve descumpri-la sob pena de tornar-se executor de um ilícito, e, possivelmente, co-autor de um crime. Qualquer outra pessoa que impede, ou tenta impedir o cumprimento da determinação judicial – ilegal ou não – é como o torcedor que invade o campo, querendo marcar um gol. E com agravante, se for juiz de Direito.

Por isso está lá, no código de ética da magistratura:

“Art. 4º Exige-se do magistrado que seja eticamente independente e que não interfira, de qualquer modo, na atuação jurisdicional de outro colega, exceto em respeito às normas legais.”

Vejamos como isso, que é teoricamente correto, funciona na prática:

Mesmo se a decisão ilegal é teratológica, seu descumprimento implica riscos: por parte do agente executor, de ser submetido a punição disciplinar. Por parte do réu, de vir a ser constrangido, com força, ao seu cumprimento. Mas o maior risco é o de serem linchados, e submetidos à ira inquisitorial dos que, transitoriamente, detêm o poder.

Ao ser interrogada pelo bispo Cauchon – que presidia o tribunal formado, para seu julgamento, por sessenta e dois clérigos traidores e hipócritas – a tão inocente quanto esplendorosa Joana d’Arc o preveniu, no seu interesse, quanto às “temíveis” consequências do seu ato. Cauchon (pronuncia-se “cochon”) fechou os ouvidos, e Joana foi queimada viva na fogueira da Santa Inquisição, como feiticeira.

Faltam-nos os dons da donzela de Orleans, padroeira da França. Ao juiz hipócrita só podemos dizer que, enquanto não chega o juízo da história, ele é prisioneiro da razão.