por: Pedro Canário

“Se estiver na dúvida sobre qual caminho seguir, siga o que o arrependimento for eficaz”, recomenda o ministro Nelson Jobim, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal. Ele conta ter ouvido o conselho do avô e tê-lo aplicado como uma regra de conduta ao longo da vida. Deve ser por isso que a impressão geral seja de que o ministro Jobim esteve sempre lá.

Eleito deputado federal pela primeira vez em 1987, foi relator da Assembleia Nacional Constituinte e participou de diversas das comissões que resultaram na Constituição Federal de 1988. Entre as comissões, a de separação dos poderes e a de sistematização, que deu forma ao que foi aprovado pelos 559 parlamentares. Desde então, já foi presidente da Câmara; presidente do PMDB; ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso, quando ajudou a elaborar a Emenda Constitucional 45, que trouxe a reforma do Judiciário; ministro e presidente do Supremo, durante a implantação do Conselho Nacional de Justiça; e ministro da Defesa do governo Lula.

Nesta entrevista exclusiva à ConJur, o ministro fala justamente sobre as relações entre os poderes. Nega que o Brasil viva uma de suas maiores crises (“estamos com problemas”), mas reconhece que o Supremo deixou de ser árbitro para virar ator político, “o que é ruim”. Causa instabilidade, na opinião do ministro. “Hoje há um voluntarismo muito forte”, diz ele.

“Tenho visto algumas decisões em que sempre se passa por um juízo de conveniência, de que é melhor assim que assado. Não compete ao tribunal o ‘eu acho que é melhor’. A sentença não é o lugar para o juiz dizer o que ele acha, é para ele dizer o que a lei diz. E aí o que acontece é essa insegurança e esse problemaço todo”, afirma Jobim.

Leia a entrevista: 

ConJur — O Supremo é o centro das atenções do país. Isso mostrou ao Brasil um tribunal bastante arisco, diversas decisões importantes sendo tomadas por seis a cinco, posições inflamadas. A grande questão é: por que o tribunal está do jeito que está? Como chegou a esse ponto?
Nelson Jobim —
 O que caracteriza hoje o Supremo é a divergência. Primeiro, conflitos individuais. E diferenças muito radicais entre a 1ª e a 2ª Turma. Há até um interesse, principalmente da parte criminal, de que os processos sejam relatados por um ministro da 2ª Turma. Tanto isso é verdade que foi julgado, depois de muito tempo, o Habeas Corpus do ex-ministro Palocci, que estava em pauta para a 2ª Turma e o relator retirou e levou para o Plenário — me parece que o relator havia ficado vencido em outros dois HCs e decidiu retirar o caso da turma por causa do placar, o que é ruim.

ConJur — É normal esse movimento?
Nelson Jobim —
 Não é normal, mas é possível. Mas não importa. O que importa é que o tribunal são os seus membros, mas os seus membros não são indivíduos, não são personagens individuais. Ou seja, não são personagens que possam se pretender ser o tribunal. O tribunal é o conjunto. E hoje há um voluntarismo muito forte em relação a isso. É matéria de imprensa a todo momento, é entrevista, são conflitos públicos na própria sessão do tribunal que desprestigiam, criam problemas. As pessoas olham para aquilo e ficam horrorizadas.

ConJur — Não era assim?
Nelson Jobim —
 Obviamente, no meu tempo havia disputa, mas não esse tipo de disputa. Havia disputa de tese. O ministro Moreira Alves, por exemplo, quando defendia uma tese, a defendia com força, mas não fazia nenhuma agressão a ninguém, não havia menção a nenhum ressentimento ou aquele negócio de atacar pessoalmente com algo que não tinha nada a ver com o caso. Isso mostra certa disfuncionalidade do tribunal hoje. O Supremo tem que retomar a sua funcionalidade e a sua gestão dos conflitos e dos desentendimentos.

ConJur — Isso é papel do presidente?
Nelson Jobim —
 É.

ConJur — O que faz, ou deve fazer, um bom presidente do Supremo? O ministro Marco Aurélio fala em “algodão entre cristais”.
Nelson Jobim —
 É, exatamente isso. A gente dizia que cada gabinete é uma república livre, independente e soberana. Então, normalmente, a Presidência tem a função de fazer esse tipo de ajustamento e, dependendo da autoridade, da respeitabilidade que possa ter o presidente do Supremo em relação aos seus colegas, cria-se um ambiente de solidariedade mesmo com os conflitos, o que não está acontecendo hoje.

ConJur — E o que está acontecendo hoje?
Nelson Jobim —
 Os diálogos fora das sessões, no sentido de dialogar sobre a funcionalidade da corte — e era importante que houvesse diálogo sobre temas para se ajustar ao conflito —, estão muito interrompidos. Se tem divergência, vamos nos ajustar a essa divergência: como vamos processualizar o problema da divergência, o momento em que isso é levado etc. Isso, ao que tudo indica, não está sendo feito. Não tenho informação, mas é o que me parece. O que a gente está vendo é isso. E de outra parte, houve uma judicialização da política: como a Constituição é muito ampla, foi ampliado o conjunto de matérias constitucionais.

ConJur — É um fator novo a judicialização?
Nelson Jobim —
 Desde que entrou em vigor a Constituição de 1988 houve uma tentativa de levar conflitos políticos para o Supremo decidir. E o tribunal, muitas vezes, inclusive quando eu estava lá, reagia dizendo que “matéria de política não é para a gente decidir”. Só que houve uma disfuncionalidade no processo político e eles acabaram sendo levados ao tribunal. Depois de um tempo, o Supremo começou a entrar nisso. E como há muitos temas constitucionais, toda discussão sobre leis acaba tendo uma referência constitucional. Principalmente considerando o fato de movimentos teóricos começarem a dizer que o peso da literalidade da Constituição está sujeito a interpretações que importam em mudar inclusive seu conteúdo.

ConJur — Como nesse caso da execução da pena antes do trânsito em julgado.
Nelson Jobim —
 Exatamente. O texto da Constituição fala que ninguém será culpado antes do trânsito em julgado da decisão, e agora se dá uma interpretação de que a prisão no segundo grau é possível. Quer dizer, se criaram mecanismos estranhos e difíceis: para ser preso não precisa ter culpa. É uma coisa meio complicada.

ConJur — Mas se a causa da crise no Supremo decorre do tamanho da Constituição, a solução seria uma constituinte?
Nelson Jobim —
 Não, esse negócio de constituinte só vai dar confusão. Abrir uma nova constituição? Minha Nossa Senhora!

ConJur — O que fazer, então?
Nelson Jobim —
 Uma forma de resolver esse problema, como já sustentei, seria fazer uma lipoaspiração da Constituição. Reduzir o âmbito das matérias constitucionais. Aí você reduz a competência do Supremo Tribunal em examinar os conflitos políticos na elaboração legislativa. O ponto de referência é: aquele tema está lá dentro da Constituição, aí a divergência política que surgiu ali acaba levada ao STF. O hábito disso é ruim.

ConJur — Por quê?
Nelson Jobim —
 Porque não é expertise da corte examinar questões de natureza tipicamente de conveniência legislativa. Tenho visto algumas decisões em que sempre se passa por um juízo de conveniência, de que é melhor assim que assado. Não compete ao tribunal o “eu acho que é melhor”. A sentença não é o lugar para o juiz dizer o que ele acha, é para ele dizer o que a lei diz. E aí o que acontece é essa insegurança e esse problemaço todo.

ConJur — Mas como fazer essa lipoaspiração?
Nelson Jobim —
 Faz uma PEC que não modifique regras, apenas retire da Constituição certos temas. Por exemplo, matéria tributária: deixa as regras gerais na Constituição e retira tudo aquilo que for específico, regra de ICMS, aquele troço todo lá. Isso pode ser feito por meio de um acordo de que a PEC vai manter na Constituição as regras gerais e deixar o resto nas Disposições Transitórias. Retira das disposições permanentes e diz, lá no ADCT, que o dispositivo continuará vigendo até que venha uma lei. Aí tem dois pontos: você não debate o conteúdo das regras, mas faz com que o Congresso retome sua autonomia material, decisória. Hoje o fato de aquelas questões estarem na Constituição retirou do Legislativo a capacidade política de resolver o problema.

ConJur — O Supremo aplica a Constituição da forma que os constituintes pensaram há 30 anos?
Nelson Jobim —
 De maneira geral, sim. Tem casos específicos, como essa coisa da segunda instância. Está lá que só é culpado quando a sentença transita em julgado, mas agora se diz “ah, não, exigir o trânsito em julgado importa criar impunidade, então não vamos aplicar”. “Mas a Constituição manda aplicar”, “mas temos um número imenso de recursos etc.” É uma coisa curiosa: a ineficiência do Judiciário, do sistema, acaba sendo paga pelo réu. Como consequência dessa ineficiência, a supressão de uma instância do réu.

ConJur — Uma análise comum é que o Supremo deixou de ser árbitro para se colocar no debate político. O tribunal tem feito isso?
Nelson Jobim —
 Tem. Não são todos e nem sempre, mas em alguns casos estão avançando o sinal. Alguns juízos avançam a mera jurisdição e começam a examinar conveniências. Não cabe ao tribunal dizer que a lei deveria ser assim, aí criar mecanismos interpretativos para dar uma solução que não é a da lei, dizer que a melhor doutrina sobre o assunto conduz para uma solução mais equânime para a nação e nós temos compromisso com a justiça e coisa e tal. Confundiu-se muito o problema da lei com a moral.

ConJur — O Supremo diz, então, que Direito e Moral são a mesma coisa?
Nelson Jobim —
 Não necessariamente. Mas em alguns casos começa a julgar a lei em vez de aplicá-la. Tem coisas caricatas aí, de juiz de primeiro grau dizendo “ah, não deveria ser assim, então vou consertar”. Porque o Supremo tem um papel de exemplo muito grande. Tudo o que o tribunal faz repercute no primeiro grau. “Se lá no STF é confuso, eu também tenho direito de fazer confusão.”

ConJur — O senhor foi uma figura proeminente na Constituinte. Não houve esse debate sobre o tamanho da Constituição lá?
Nelson Jobim —
 Ali a situação era outra. Vínhamos do regime militar e a desconfiança com o passado fazia com que tudo fosse levado para a Constituição. E havia um dado pragmático: era muito mais fácil aprovar um texto na Constituinte do que aprovar um texto de lei.

ConJur — Por causa dos consensos?
Nelson Jobim —
 Não, porque para aprovar um texto constitucional você precisava de maioria absoluta em dois turnos e acabou. Para aprovar uma lei, tem que aprovar na Câmara, depois no Senado, e, se o Senado mexe, volta para a Câmara, e depois a Câmara examina o que o Senado fez, e depois vai para o Executivo, que veta e depois volta ao Congresso para eventual rejeição do veto e etc. etc.

Naquele momento todo mundo queria entrar na Constituição. Trabalhei junto com o Fernando Henrique na elaboração do Regimento Interno e depois fomos relatores adjuntos do Bernardo Cabral, que era o relator. Então assistimos a tudo. Fernando Henrique conta que recebeu uma visita dos taquígrafos da Câmara pedindo para ter um artigo na Constituição. “Ué, mas por que os taquígrafos?” “Ah, mas todo mundo está lá!”

ConJur — O próprio Congresso se aproveita desse detalhismo da Constituição para abrir mão de decidir, não? Essa discussão da execução antecipada da pena, por exemplo. É um debate constitucional, mas o Código de Processo Penal foi atualizado com a jurisprudência do Supremo. Mesmo assim uma das ADCs sobre o tema foi ajuizada por um partido.
Nelson Jobim —
 Esse é outro tema: abriu-se muito a quantidade de legitimados ativos para a ação de constitucionalidade. Antes de 88, não era esse nome, era representação de constitucionalidade, só o procurador-geral da República, que era ligado ao Executivo, fazia parte do gabinete, era legitimado. Aí a Constituição separou, deixou Ministério Público e Advocacia-Geral da União, que absorveu a antiga Consultoria-Geral da República. Mas essas coisas são normais do processo.

ConJur — Em que sentido?
Nelson Jobim —
 Não vejo isso de que o Brasil está numa crise imensa. Estamos com problemas, mas não é uma crise que vá abalar as instituições, que estão funcionando. Podem não estar funcionando como a gente gostaria, mas o fato é que estão funcionando. Creio que com as eleições, vindo um novo presidente e um novo Congresso, a coisa vai se resolver. Mas também não acredito que o Congresso será grandemente renovado. Em primeiro lugar, um terço dos senadores vai se manter. Então vêm dois terços de Senado e mais a Câmara toda. Mas essa coisa de renovação não é bem assim — quando eu falo em renovação significa vir gente nova que estava fora da política, não o governador que virou senador, ou o deputado estadual que virou deputado federal. E se você fizer uma análise de processos de renovações da Câmara, verá que não é aquele negócio todo. Não sei falar em números, mas ela não passará de 30%.

ConJur — Qual deve ser a principal missão do próximo presidente?
Nelson Jobim —
 O presidente eleito terá que ter capacidade de negociação, de entendimento, para estabelecer uma agenda de mérito. E aí nesse entendimento poderá ter algumas questões que as pessoas concordem, que os partidos concordem, e outras que os partidos não concordem. Uma agenda de consenso e uma agenda de dissenso. Na agenda de dissenso você ajusta o processo legislativo, como isso vai ser discutido.

ConJur — Só que os lados não se ouvem mais.
Nelson Jobim —
 Há um elemento novo dentro da atividade política que é a raiva real. As pessoas não se falam, não conversam, e política é exatamente a conversa para tentar superar as divergências e criar uma situação. Além da raiva, foi rompida uma regra fundamental da política: “Não falar com Fulano e não vou sentar à mesa se ele estiver”. Em política, não se escolhe interlocutor. O interlocutor é o que está aí, é o sujeito que foi eleito, que tem uma liderança política, enfim. É o que está na mesa agora. Não posso, na atividade política, dizer que não vou falar com Fulano porque ele é um bandido ou isso ou aquilo. Ele está lá e então vou ter que conversar.

ConJur — E por que essa raiva?
Nelson Jobim —
 Pela disfuncionalidade. Na Câmara, houve um marco, que foi uma disputa equivocada do PSDB com o PT em 2005. Os partidos se organizam em lideranças e bancadas, que são os pontos de contato com a Presidência da Câmara e com o Poder Executivo. Na eleição para a Presidência da Câmara de 2005, o PT tinha um candidato e o PSDB tinha outro e havia um candidato independente, do baixo clero, chamado Severino Cavalcanti. Ele foi candidato autônomo, não era das lideranças partidárias. A disputa foi muito acirrada entre PT e PSDB, e só o candidato do PT foi para o segundo turno, contra o Severino. E aí parte da bancada do PSDB, em retaliação, votou no candidato avulso, que acabou eleito. O resultado foi que os líderes passaram a não ter importância, porque os deputados passaram a ter acesso direto ao presidente. As reivindicações não passavam mais pelas lideranças, era como se fosse um bonapartismo, sem intermediações.

Lembro de uma cena, quando estava no Supremo e fui a uma reunião na Presidência da Câmara por causa de um projeto qualquer. Cheguei lá e não reconheci o ambiente: a mesa cheia de deputados do baixo clero sentados e os líderes de pé, com Severino Cavalcanti na ponta da mesa. Ou seja, perdeu a funcionalidade.

ConJur — Então a raiva entrou no processo político com aquela eleição?
Nelson Jobim —
 Não, ali a funcionalidade do processo de liderança acabou se esvaziando. A raiva veio depois, porque a disputa política passou a ser uma disputa de indivíduos. Lembro do Dr. Ulysses Guimarães dizendo “em política, até a raiva é combinada”. E era mesmo! A gente combinava como iam ser as disputas e tal. Hoje não se faz mais nada disso, porque não há diálogo. E aí a imprensa tem parte da culpa, porque o que dá notícia não é a conciliação, não é a solução do problema, é o conflito.

ConJur — Há muitas críticas sobre a forma como a ministra Cármen Lúcia faz a pauta de julgamentos do Plenário. Dizem que ela não ouve ninguém, não consulta ninguém e apenas publica uma pauta já para o mês todo.
Nelson Jobim —
 Há um distanciamento. Inclusive essa questão da prisão em segunda instância: a rigor já tem a matéria pronta, então por que não botou para julgar essas ações diretas? Mas não, não julgo, não posso julgar. Isso não é bem assim. Presidente nenhum é dono da pauta. A pauta é uma necessidade da instituição, e não da vontade da Presidência. (…)