por: Maria Cristina Fernandes Entrevista de Dilma ao Valor

Guilherme Covolo arrasta uma cadeira na direção da varanda do apartamento da avó na tentativa de alcançar o beiral. Aos 13 meses, ele fala “papai”, “mamãe”, “Ga” (para se referir ao irmão, Gabriel) e “vovó”. É a ela que se dirige, já subindo na cadeira: “Qué pulá”.

Na ausência da filha e do genro, a ex-presidente Dilma Rousseff passou o Carnaval em casa cuidando dos dois netos. Com Gabriel, de seis anos, ainda pode recorrer aos livros. O menino folheia e recria diálogos, não sem antes assegurar que esteja sozinho: “Vovó, você pode sair daqui?”. O caçula ordena sem rodeios. À noite, ambos desfazem a cama da avó várias vezes antes de a empurrarem até que só lhe reste a beirada do colchão para dormir.

Guilherme nasceu na primeira semana do ano em que a avó foi deposta. Gabriel tinha quatro anos, mas não se apercebeu do ocorrido. No limite, pergunta por que ela não faz, em Porto Alegre, um palácio igual àquele de Brasília. “Eu não sou princesa, pô”, lhe responde a ex-presidente.

Dilma Rousseff recebeu o Valor em seu apartamento. Da sala de baixo, que se atravessa em três passos, parte uma escada caracol em madeira ao lado de um quadro de Siron Franco, presente do artista. O andar de cima se resume a escritório e terraço.

Atrás de um biombo fica o espaldar em que faz alongamento e musculação. No lado oposto às estantes está o tear de madeira e um cesto de linhas. Aprendeu a usá-lo na cadeia a partir de um modelo feito de caixa de maçã e pregos. Nele, as detentas da torre das donzelas, no presídio Tiradentes, faziam peças para vender. Aquele que tem em casa ainda não foi reativado. Um tapetinho amarelo sob o notebook, tecido antes da temporada brasiliense, é a prova de que um dia foi usado.

“À Mesa com o Valor” seria movida a brownies sem glúten, sem lactose e sem soja e chá de limão com framboesa, mas os regalos ficam esquecidos numa mesinha ao lado da poltrona da presidente. Depois de arriscada escalada pela escada estreita, Cleo, uma das assessoras a que tem direito na cota de ex-presidente, coloca a bandeja à sua frente. Lá estão a garrafa térmica, xicrinhas floridas, jarra com água e copos.

Há quase um ano fora da Presidência, Dilma manteve o peso e o gênio. Mal Silvia Zamboni começa a clicá-la, avisa: “Não vou fazer fotos durante a entrevista. Até estou muito meiga. Não sou tão meiga assim. Depois vamos parar, né, querida?”. Custa a depor as armas, mas a conversa continua, bem como as fotos.

Quando está em Porto Alegre, a rotina se inicia com uma pedalada de 50 minutos. É o único exercício aeróbico que consegue fazer. Caminhar a entedia e o joelho, 69 anos depois, já não dá conta de corridas. Atribui aos exercícios o bom momento da saúde. “Sempre tive atividade física, então retomar não foi tão difícil. Dizem que o corpo tem memória.” Referências aos presídios de sua vida, ao longo da conversa, atestam que o dela nunca a perdeu.

Não parece contaminada pela tristeza que dá nome ao bairro, na zona sul de Porto Alegre, em que mora para estar mais perto da filha: “Meu outro apartamento é maior, mas fica num lugar mais coxístico”. A prefeitura da capital e o governo do Estado são ocupadas por dois entusiastas do impeachment (o tucano Nelson Marchezan Jr. e o pemedebista José Ivo Sartori), mas a ex-presidente diz não enfrentar hostilidades na rua. As pessoas a abordam no supermercado e alguns pedem para tirar foto. “Só não paro quando estou de bicicleta. Digo ‘Se querem tirar foto, a gente engrena junto’.” Ciclistas do “pedal das gurias”, quando a acompanham até o fim do percurso, arrancam uma foto sem selim.

Engata um tema noutro com uma fluidez que lhe faltou nas falas presidenciais. A fluência é gaúcha. Passou a omitir, com frequência e ênfase, o “s” no plural. Relata boa acolhida em voos. “Vem todo mundo pra tirar foto. Os comissário, as comissária, até o piloto. Só pergunto para ele: ‘E quem ficou lá dentro?’.”

Está de calça azul-marinho, blusa e brincos vermelhos e escarpin baixo. Usa uma corrente de ouro fina e conserva o olho grego, símbolo de proteção, numa pulseira do braço esquerdo. Mantém o cabelo curto com reflexos e a testa menos franzida.

Sente falta do poder? “Posso até sentir, mas não agora. Sempre fui uma pessoa que se acostuma com a vida. Tinha uma vida lá, com um ritmo e uma função. Era obviamente interessante, sempre vai ser. Instigante, importante, né? Aqui tenho outra vida. Gosto muito de ler, de ver filme. Escuto ópera.”

A lista de leituras é imensa. A primeira vem para rebater a provocação de que seu governo geriu o maior esquema de corrupção do mundo: “Makers and Takers” (Penguin, 2016, ainda sem tradução no Brasil), de Rana Foroohar, jornalista de origem turca de 47 anos, colunista do “Financial Times” e ex-editora na revista “Time”. “As pessoas esquecem que na origem da crise de 2008 está a corrupção de um setor desregulado que atingiu o mundo inteiro.”

Na resenha de Dilma, o livro mostra como o setor financeiro, a partir do primado do acionista, deixou de assegurar a expansão da indústria, do serviço e da agricultura, para se transformar em um fim em si mesmo. Toma o exemplo da Apple, que, a despeito de ter quase US$ 250 bilhões em caixa, tomava empréstimos para fazer compras e recompras de ações. Dessa forma, as valorizava e, com o lucro da transação, pagava dividendos e remunerava a participação acionária dos dirigentes.

Naquela quinta-feira pós-Carnaval, a ex-presidente estava nas últimas páginas de “Makers and Takers”, mas se sentia à vontade para exibir sua identidade com a autora, na constatação de que a financeirização, ao maximizar o lucro, reduz o investimento em tecnologia e induz desigualdade: “Então uma empresa não tem por objetivo fornecer bens e serviços, mas sim dar lucro para o acionista, e vamos deixar de conversa fiada”.
Dilma ainda se vale do escudo de Rana Foroohar para sair em defesa da política de redução de juros de seu governo. Parece convicta das razões pelas quais as empresas não fizeram o mesmo: “Todas as empresas são um pouco bancos. Se não tiverem, nas suas tesourarias, esse aspecto de banco, não conseguem uma valorização suficiente”.

Dilma está aclimatada à cidade em que passou a maior parte de sua vida. Faz 42°C naquela tarde de quinta-feira em Porto Alegre. O calor pouco arrefece com o anoitecer. O ar-condicionado do escritório assegura a sobrevivência, mas a água termina antes do café. Começa a se sentir à vontade para teorizar sobre os motivos de sua deposição.

Desde 2015, o Brasil enfrenta uma recessão sem precedentes, mas o impeachment é, na visão de sua principal vítima, uma decorrência de placas tectônicas em desarranjo global.

O nível de desoneração de tributos das empresas foi errado. Tivemos perda fiscal muito grande sem beneficiar o conjunto da economia
Recorre a outro livro, este já concluído, “A Doutrina do Choque: A Ascensão do Capitalismo de Desastre” (Nova Fronteira, 2008), da jornalista canadense Naomi Klein, de 46 anos, para explicar a tríade que está em curso e teria catapultado seu governo: financeirização, aumento da desigualdade e Estado de exceção.

Na descrição da leitora, Naomi mostra como se constroem processos pelos quais aquilo que parecia politicamente impossível acaba por se tornar inevitável. A crise instalada no seu governo abrira oportunidade para reversão de modelo. O impeachment teria sido o choque necessário para que a liberalização econômica (fim da política de conteúdo nacional) e a reversão de políticas sociais (reformas trabalhista e previdenciária) pudessem vir a ser adotadas rapidamente.

A ex-presidente está em pé. Serve-se de mais uma xícara de café e anda pelo escritório sem parar de lançar teorias sobre sua queda. É lembrada de que, em seu discurso de despedida, disse ter cometido erros, não crimes. A curva da história talvez pudesse ter sido outra sem esses erros. Quais foram?

Não baixa a guarda sobre o partido, mas dá solenidade à revelação à qual voltaria dias depois em Genebra: “Vou te falar, acho que cometi um erro importante, o nível de desoneração de tributos das empresas brasileiras. Reduzimos a contribuição previdenciária, o IPI, além de uma quantidade significativa de impostos. Com isso, tivemos uma perda fiscal muito grande. Nossa expectativa era evitar que a crise nos atingisse de forma pronunciada. Por isso, aumentamos também o crédito, mas acho que aí não erramos. Erro foi a desoneração porque, ao invés de investir, eles aumentaram a margem de lucro às custas de mais fragilidade nas contas públicas. Se for olhar o nível de despesas de pessoal no meu governo, é menor do que nos anteriores. A crise fiscal não derivou de excesso de gastos, mas essa renúncia tinha a intenção de beneficiar o conjunto da economia, o que não ocorreu”.

Só estendeu uma das mãos à palmatória, mas, dado o vigor com o qual defendeu a política de desonerações ao longo de seu governo e até agora, não parece pouco. Naquele momento, ainda resiste a espalmar a outra mão à palmatória da Lava-Jato: “Agora, o que eu tenho certeza que o meu governo jamais fez foi compactuar com a corrupção. Entro num tema que acho sério, que é o sincericídio do ministro por um mês, do Planejamento, o senador [Romero] Jucá, quando disse que tinha que estancar a sangria e usou palavras, assim, pornográficas para descrever as relações políticas no Brasil”.

Foi na sua gestão como presidente do conselho de administração que a Petrobras aprovou a compra da refinaria de Pasadena, no Texas, símbolo do buraco sem fundo em que se transformou a estatal. Dilma nunca arredou pé de seu voto. A compra foi aprovada por unanimidade por um conselho formado, entre outros, pelos empresários Jorge Gerdau Johanpeter, Fabio Barbosa e Claudio Haddad, sob a justificativa de que havia relatórios técnicos em profusão que a recomendavam.

A ênfase em “meu governo” não parece solta na frase. Foi na gestão Dilma que Graça Foster assumiu a presidência da Petrobras, afastou os diretores suspeitos e cerceou os contratos por eles geridos, decisão que começou a corroer a base de apoio ao governo no Congresso montada pelo antecessor: “Se não achasse importante o combate à corrupção, não teria sancionado a lei da delação premiada, não teria respeitado a Polícia Federal, não teria respeitado o Ministério Público, nem nomeado ministros [do Supremo Tribunal Federal] que tivessem uma inequívoca biografia”.

Deixou um fio solto ao não se comprometer com o que o partido fez antes de sua posse, inclusive para elegê-la, mas corre para amarrá-lo: “O combate à corrupção no Brasil mais uma vez virou uma arma ideológica. Enquanto as investigações estavam sobre o PT, ou alguém do PT, não havia problema em vazamento, não havia problema em 500 mil pesos e mil medidas. Agora tem. Uma coisa que, visivelmente, em qualquer país do mundo, seria caso de quebra da segurança nacional, que é gravar o presidente sem autorização do Supremo, tudo isso foi permitido. Agora, quando chega ao PMDB ou PSDB, é criminalização da política”.

Dilma ganhou apertado em 2014. Começou a cair quando custou a transformar a estreita vitória eleitoral em hegemonia política. O desafio lhe fora lançado por aquele que viria a ser seu maior algoz, o então deputado pemedebista Eduardo Cunha, em discurso de posse na presidência da Câmara dos Deputados, quando, assessorado por um amigo, revelou inesperada cultura gramsciana (“Sabemos que a eleição, muito diferentemente das três últimas eleições, não teve uma hegemonia eleitoral. Ela teve uma vitória eleitoral que não dá condição para hegemonia política. Só a hegemonia eleitoral tem como consequência a hegemonia política.”).

Estava aberta a avenida para a ex-presidente falar dos entraves políticos que encontrou em seu partido e fora dele para a construção desta hegemonia, mas Dilma opta por sua zona de conforto, a economia: “No início do meu governo, em 2011, fizemos um ajuste e, até 2014, resistimos à crise. A guerra cambial com os Estados Unidos valorizou nossa moeda de uma maneira muito perigosa para a indústria. Reduzimos a taxa de juros, pra segurar a economia. Foi aí que veio 2013”.

A ex-presidente até hoje ainda não se sente capaz de dar uma explicação cabal para aquelas manifestações. Muito menos por que fizeram bis no seu impeachment e não mais voltaram a se repetir quando se mostrou que o grupo empossado, além de promover a lambança, havia assumido para podar direitos trabalhistas e previdenciários: “Ainda vamos precisar de uma distância histórica para entender. Tem uma parte simples, mas não responde tudo. É mais fácil distribuir renda do que ampliar serviços. A renda tem um tempo político mais rápido que o acesso a serviços. E como, de fato, o fim da miséria é só o começo, as pessoas sempre querem mais”.

Quando começa a perder o chão, Dilma volta à narrativa em que navega sem instrumentos: “Entramos na maior seca do Brasil dos últimos 80 anos, aquela da Cantareira vazia. O preço de não ter apagão no Brasil sempre será caro porque você para de usar água, que é gratuita, e passa a pagar por um combustível. Seguramos essa pressão de custo até as eleições. Acaba o processo eleitoral e constato que o centro não quer colaborar, começa a jogar no quanto pior, melhor. ‘É a quarta eleição que eles ganham.’ Aí dão início ao processo de desconstrução da vitória, que começa com o pedido de recontagem de votos e só vai terminar no impeachment”.

Entre sua vitória e a posse o PT começa a namorar com o perigo ao lançar Arlindo Chinaglia para derrotar Eduardo Cunha. Paralelamente, o Palácio do Planalto tenta montar uma nova base de apoio, liderada pelo PSD de Gilberto Kassab e pelo PP de Ciro Nogueira, para reduzir a dependência do PMDB. As duas cartadas fracassam e o governo já se inicia derrotado. Os parlamentares não batiam mais às portas do Palácio para pedir cargos. Iam diretamente ao gabinete de Cunha.

O deputado, numa demonstração de que os magos da política também erram, cumpriu a vendeta de ir à CPI. Foi a versão exposta naquela comissão para os recursos mantidos no exterior que comprometeu seu mandato e a liberdade. Naquele momento, no entanto, havia uma forte pressão por um acordo, vinda, principalmente, do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do então ministro-chefe da Casa Civil, Jaques Wagner, para dar, ao deputado, os três votos do PT no Conselho de Ética.

Dilma não fulaniza: “Tinha gente que dizia pra mim: ‘Tem que fazer aliança com Eduardo Cunha’, mas o rompimento, olhando de hoje, era inexorável. Não existe acordo com Eduardo Cunha. Existe submissão. As 19, ou 15 ou 38 perguntas ao Temer, o pacote de [José] Yunes, o que você acha que é, querida? Você está falando de um gângster inteligente. Devia ajoelhar e aceitar as condições?”.

A recusa a um acordo não lhe custou o mandato? “Custaria mais para o país. Muito mais”. Não está custando agora, pelo conjunto da obra do governo Michel Temer? “Acontece o seguinte, minha querida, custaria eu fazer, né? Você vai me desculpar mas eu não vou assaltar o país. Eduardo Cunha e eles assaltam o país. Assaltam. Do verbo assaltar. Além de outras coisas, né? Ele tem uma postura, em relação a direitos, coletivos e individuais, extremamente sectária.”

Cunha é claro nas perguntas. Está lá explícito que quem roubava na Caixa Econômica Federal, no FGTS, era o Temer. É o roteiro de uma delação
Dilma está novamente em pé. Anda, fala, e apoia as mãos no espaldar da poltrona para ser mais enfática. Ao contrário dos seus críticos, alguns dos quais de seu círculo mais próximo, a presidente custa a aceitar que a crise que lhe custou o mandato poderia ter sido evitada se fosse menos mercurial e cultivasse mais as relações interpessoais. “Este não é um movimento que dependa da vontade pessoal. Também não gosto de fazer análises pura e simplesmente moralistas das pessoas. É mais interessante pensar a função delas. O Senado resguarda mais esse centrão democrático, construído pós-Constituinte de 1988. Mas na Câmara este centro foi engolido pela direita conservadora. O centro democrático explodiu. É muito grave. E isso começou no meu impeachment, quando o centro passou a ser liderado por uma figura como Eduardo Cunha.”

A ex-presidente lista as reformas previdenciária e trabalhista (“tem que fazer, mas não é desse jeito. Não é com 49 anos de exigência”), o teto de gastos (“vai pinochetizar o Brasil”), a venda de partes da Petrobras e a desconstrução de bancos públicos como consequências da captura do centro pela direita.

Foi na tessitura das relações com as quais tentou permanecer no poder que a presidente reconhece seu segundo erro: levar Michel Temer para o coração da articulação política. O então vice-presidente percebeu a fragilidade do governo junto a uma base que não parava de se queixar. Ao lado de Eliseu Padilha, atual ministro-chefe da Casa Civil, à época na Aviação Civil, mapeou o cerco. Arrepende-se de tê-lo colocado dentro do governo? “Olha, minha filha, não sabíamos que o nível de cumplicidade dele com o Eduardo Cunha era tão grande. Nenhum de nós sabia, nem o Lula. Depois é que descobrimos. Ele sempre negou essa cumplicidade que agora todo mundo já sabe.”

Quando começa a falar de Temer, Dilma, pela primeira vez ao longo de quase quatro horas de conversa, franze o cenho, encrespa a fisionomia e libera o calão. “Saber quem eles são, nós sabemos. Não tenho a menor dúvida de quem é Padilha e Geddel [Vieira Lima, ex-ministro da Secretaria de Governo]. Convivi sabendo quem eram. Não tenho esse ‘caiadismo’ [de Ronaldo Caiado] de falar que eu não sabia quem eram. Sabia direitinho. Inclusive uma parte do que sou e da minha intolerância é porque eu sabia demais quem eles eram.”

Nesse momento, Dilma relativiza a frase categórica sobre a extensão da faxina de seu governo: “Saber demais não significa que você é capaz de impedir algumas coisas. Por exemplo, o gato angorá [Moreira Franco] tem uma bronca danada de mim porque eu não o deixei roubar, querida. É literal isso: eu não deixei o gato angorá roubar na Secretaria de Aviação Civil. Chamei o Temer e disse: ‘Ele não fica. Não fica!’. Porque algumas coisas são absurdas, outras não consegui impedir. Porque para isso eu tinha de ter um nível de ruptura mais aberto, e eu não tinha prova, não tinha certeza, entendeu? Não acho que é relevante fazer fofoca, conversinha. Posso contar mil coisas do Padilha e do Temer, então? Porque o Temer é isso que está aí, querida. Não adianta toda a mídia falar que ele é habilidoso. Temer é um cara frágil. Extremamente frágil. Fraco. Medroso. Completamente medroso. Padilha não é. A hora em que ele [Temer] começa assim [em pé, mostra as mãos em sentido contrário, com os dedos apertados em forma de gancho]. É um cara que não enfrenta nada!”.

Os brownies intactos na mesinha ao lado são indício de que a ex-presidente gerencia bem as ansiedades da memória. Na novela da Lava-Jato, o capítulo preferido é o das perguntas de Eduardo Cunha a Temer, parte das quais foram vetadas pelo juiz Sergio Moro. “Quando li a primeira vez, lá sabia quem era José Yunes [ex-assessor da Presidência]? Mas lá está Eduardo Cunha dizendo que quem roubava na Caixa Econômica Federal, no FGTS, é o Temer. Leia, minha filha. Não tenho acesso às delações, mas sei o que é um roteiro. E lá está explícito roteiro da delação de Eduardo Cunha. Explícito. Alguém não sabe que o Cunha está dizendo que não foi o Yunes, mas o Temer?”

A leitura dos jornais ao longo dos últimos meses lhe deu a certeza de que ainda está cedo para escrever sobre a derrocada. “Deixa passar mais tempo. Vai ficar muito mais claro esse troço.” Os dois primeiros volumes dos diários de Fernando Henrique Cardoso, presenteados por duas jornalistas, estão à vista na estante, mas a ex-presidente diz que não os leu.

Resiste ao formato de diário. “Jamais faria desse jeito. Não tem início, nem meio, nem fim, pô. É um troço desalinhavado do cão. Tem que escrever pra contar o mais próximo possível o que aconteceu. Pra entender, não para se defender, dentro daquele princípio: pra mudar, é preciso saber. Você tem que saber o que aconteceu.”

Já foi procurada por editoras, das quais declina o nome, mas nem a promessa de adiamento a atrai. É lembrada de que o mercado está inflacionado pelas memórias de Barack e Michelle Obama, pelas quais os lances já chegaram a US$ 60 milhões. “Obama é Obama, US$ 60 milhões é para nunca mais pensar em dinheiro nesta e na outra existência.”

Dilma vive com a aposentadoria do INSS de R$ 5.578,00 e a renda de aluguéis de imóveis deixados pelo pai, que ainda custeiam o sustento da mãe, Dona Dilma, e do irmão, Igor. Não revela a renda mensal, mas é dela que tira ainda o aluguel de um depósito onde guarda os objetos ganhos durante a Presidência, e a viagem mensal que faz a Belo Horizonte para visitar a mãe de 94 anos.

Frequentemente a encontra de mãos dadas com a irmã, Arilda, que lhe fazia companhia no Alvorada, e com quem hoje divide um apartamento próximo a um sobrinho médico, que as acompanha de perto. Sobrevivente de sucessivos acidentes vasculares cerebrais, a mãe não se deu conta do turbilhão do impeachment. Instalada na capital mineira, com demência senil, limitou-se a dizer que estava satisfeita em voltar para casa.

Dilma contesta a informação, de fonte primária, de que o ex-marido, Carlos Araújo, e a filha Paula ajudam na manutenção da família –“Vivo modestamente, querida”, diz, declinando de informar quanto lhe rendem os aluguéis dos dois apartamentos, no Rio e em Porto Alegre, e de uma casa na capital gaúcha.

Passou a receber a aposentadoria assim que deixou a Presidência, aos 68 anos, mas enfrenta batalha jurídica com o governo para que, além da idade e dos anos trabalhados, se leve em consideração também o período da clandestinidade pelo qual foi anistiada. Atribui a pendenga a perseguição e diz que a única reparação que pretende é a do reconhecimento formal, no documento previdenciário, da anistia.

Não espera rendimentos da agenda intensa de palestras – “Não gosto de cobrar”. Na semana passada, esteve em Genebra. Em abril vai ficar dez dias nos Estados Unidos, período durante o qual vai falar em Harvard, Columbia, Princeton e Brown. Recebe passagem e hospedagem, mas recusa ajuda de custo. “Esse tipo de coisa limita muito”, diz, sem se alongar sobre as acusações da Lava-Jato contra as palestras de seu antecessor.

Foi sondada por universidades estrangeiras para fazer pós-doutorado. Também não descarta dar cursos avulsos na Fundação Perseu Abramo pelos quais possa vir a ser remunerada. A bibliografia seria encabeçada pelos escritos do filósofo italiano Giorgio Agamben sobre o Estado de exceção, da República de Weimar a Guantánamo.

Diz que a volta para a política não está nos seus planos, a despeito de já ter declarado que não a descarta – “Falei aquilo para depois, se mudar de ideia, não ser cobrada”. Depois de arregimentados os ministro Ricardo Lewandowski e o então presidente do Senado, Renan Calheiros, para manter seus direitos políticos no julgamento do impeachment, a ex-presidente, incluída na lista do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, enfrentará ainda o julgamento de suas contas eleitorais que pode colocar em risco um eventual retorno às urnas.

Os flagrantes do discurso de candidata são frequentes (“É impossível, num país como o nosso, eles quererem reverter tudo como estão fazendo. É gravíssimo. Ninguém perde tantos direitos assim”), bem como o gosto adquirido pelo processo eleitoral: “Temos um encontro marcado com a democracia. Não importa que ganhe seu opositor. Você vai ter que respeitar; 2018 vai ser um banho com sabão e água sanitária em todo esse processo”.

A ex-presidente, no entanto, não dá de barato que o sistema político se manterá intacto até as eleições, quando acredita que uma candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência seria imbatível. Dá asas a elocubrações como a de que, para evitar a eleição de um candidato que retruque o arrocho, o Congresso pode vir a aprovar o parlamentarismo.

A resistência da ex-presidente em se prolongar nos erros do seu governo e, principalmente, do seu partido e de sua principal liderança é inversamente proporcional à crença de que sua derrubada teve pinceladas conspiratórias, inclusive de interesses geopolíticos contrariados por uma política externa que pôs em pé os BRICs e enfrentou a rede de espionagem americana.

Do que mais lamenta? Petrobras e indústria naval. Três tesoureiros do PT foram para a cadeia, mas, na escala de lamentações da ex-presidente, inadmissível é o uso da corrupção como “instrumento de combate político e ideológico”. “Nenhuma empresa de engenharia é angelical, as nossas não são, mas as dos outros países também não são. Outro dia estava vendo como é que ficou uma licitação de infraestrutura de gás na Petrobras. Quando você busca o nome das empresas internacionais que se qualificaram e coloca a palavra ‘corrupção’, todas já enfrentaram processos. E nenhuma delas foi destruída.”

Dilma não contabiliza a pressão emocional no passivo do impeachment. Passados 11 meses, a patrulha não sossegou. No Dia Internacional da Mulher, redes de WhatsApp fizeram circular a foto de uma traseira de caminhão onde se lia: “Parabéns a todas as mulheres, menos a Dilma”. “Sou contra a visão policialesca do escracho. Sempre foi uma arma da tortura, arma dos bandidos. Não me feriu porque sabia de quem vinha. Mesmo quando são pessoas comuns que fazem, não são intrinsicamente bandidas, mas estão sendo usadas. Então não dá para se deixar abalar.”

A ex-presidente contesta a voz corrente de que as crises se agravaram no seu governo porque sua sobrevivência à tortura fazia com que os problemas fossem levados ao limite, sua zona de conforto. “Não me acostumei com a crise. Ninguém se acostuma. A única coisa que você sabe é que tem que resistir. Qualquer pessoa pode ser forte. Eu sou ‘dura’. Me cobraram de eu ter ido ao Senado, se o processo era viciado. Fui porque achei que seria importante para o país. É grave porque se uma presidente perde direitos, o que podem fazer com o cidadão comum? Mas, de qualquer jeito, mantinha-se a institucionalidade. Não estamos numa ditadura em que toda a sociedade perde direitos.”
Lembra da folclórica sessão de 17 de abril na Câmara dos Deputados como um presente que lhe foi ofertado. Acredita que, naquele dia, caiu a ficha da imprensa internacional sobre o que ocorrera no Brasil. Guarda, com nostalgia, a lembrança da solidariedade recebida por chefes de Estado e, principalmente, da premier alemã, Angela Merkel.

No rol de leituras que acumula desde que foi deposta, a ex-presidente ainda não revisitou as tragédias gregas, nem mesmo seu ex-professor que ainda vive em Porto Alegre e conserva lembranças da aluna espalhadas em seu apartamento. Ainda mantém a versão em apostila de Filoctetes, o herói grego mandado para uma ilha deserta onde ninguém pudesse sentir o odor de suas feridas. “É um barato aquilo. É sem perdão, entendeu? Não tem meia boca. Não tem culpa judaico-cristã. Deixa na ilha e pronto.”

Nunca se sentiu feita de Filoctetes? “Não, nós mulheres temos mais de Antígona.” Dilma passa a discorrer sobre a filha de Édipo que lava e enterra o irmão, a despeito da proibição de que se mexesse no corpo do guerreiro que atacara Tebas. “Tem uma fala genial em que ela diz que a razão natural de enterrar o irmão era mais forte que a razão de Estado”. Na narrativa de Dilma, como se sabe, o papel de Creonte, o poderoso de Tebas, permanece vago.

http://www.valor.com.br/ cultura/4902470/segunda-torre- de-dilma