É preciso lembrar que as crises costumam se transformar em tragédia.

A pauta se oferece rica, e os temas da política internacional são atraentes, ainda que desagradáveis, a começar pelo muito que a onda terrorista nos cobra de reflexão, para além da mediocridade estandardizada de nossa imprensa, neste episódio como em todos, condicionada em sua miopia pelo que lhe dizem suas matrizes norte-americanas e europeias.

Eduardo Cunha e Renan Calheiros em encontro do PMDB: ambos são investigados (Foto: José Cruz / Agência Brasil)

Eduardo Cunha e Renan Calheiros em encontro do PMDB: ambos são investigados (Foto: José Cruz / Agência Brasil)

Na ‘guerra’ aos aspectos externos do chamado terrorismo, um produto ocidental alimentado por políticas ocidentais (como ‘ocidentais’ leiam-se nomeadamente as políticas de EUA, França e Inglaterra), as potências imperialistas terminarão por construir uma guerra de verdade, porque isto faz parte de seu DNA, pois de guerras vivem, delas carecem, e por isso mesmo as estimulam, as provocam, as financiam, como Arábia Saudita, Turquia, EUA, França e Inglaterra financiam, hoje, os conflitos que dilaceram o Oriente Médio.

Dilaceramento que, destruindo países, aniquilando nações e promovendo genocídios, atendem aos jogos da geopolítica dos impérios. Ou seja, nada dizem respeito aos interesses dos povos vitimados, postos em guerra independentemente de seus projetos de povos, nações e países.

Assim, as potências imperialistas financiam os conflitos – e a partir deles e em última análise –, financiam o terrorismo, que é, fundamentalmente, um subproduto desses conflitos. Há o estímulo político, há a provocação ideológica, há a motivação religiosa e há a intervenção, direta ou indireta, seja fornecendo recursos, como o faz a Arábia Saudita, seja comprando petróleo do Estado Islâmico, como o faz a Turquia (acusada pelo general Wesley Clark, ex-comandante da Otan), seja vendendo ou fornecendo armas como fazem os EUA com os ‘rebeldes’ na Síria.

Por detrás da derrubada do avião russo na fronteira da Síria com a Turquia, há algo muito mais sério, e mais preocupante do que a retórica belicista dos príncipes de Ancara e Moscou. Ali se trava um ensaio maior de um conflito maior, que diz respeito à redistribuição de poder das potências militares no Oriente Médio, neste caso um simples pasto, território para ocupação e exploração, espaço para experimentos guerreiros e confrontos calculados.

Não se esqueça, porém, o Ocidente (pelo menos não ignoremos nós) que esse urso ferido e humilhado que já foi a poderosa União Soviética, conserva as garras atômicas de seu tempo de império.

Aqui em nosso subcontinente, a confirmação da vitória do candidato direitista (ou, mais do que isso, do adversário do kirchnerismo), significa, antes de mais – e não é pouco –, a interrupção de uma vaga populista-de-centro-esquerda-nacionalista-anti-neoliberal (como classificar esse segmento do peronismo?) que gozava o poder havia 13 anos. Esse fenômeno pode ser, politicamente, um fato isolado, ou seja, um episódio exclusivamente argentino, sem risco de contaminação regional.

À derrota eleitoral do peronismo, porém, pode somar-se a reiteradamente anunciada e pleiteada e desejada e proclamada derrota do chavismo nas próximas eleições legislativas venezuelanas.

No mesmo passo são crescentes as dificuldades de Rafael Correa no Equador, e, em menor grau as de Bachelet no Chile. Dificuldades, todavia, que conhecem seu himalaia entre nós, com a crise continuada do governo Dilma – e do petismo e do lulismo –, a menos de um ano de nossas eleições municipais. Não se afirma, já, que a ‘onda rosa’ inaugurada por Chávez em 1999 – mas que reconhecidamente teve seu apogeu nos dois governos Lula – encontrou seu ponto de refluxo.

A vitória de Macri, nesse sentido, é apenas um indicador, ainda que grave e significativo, mais significativo ainda quando sua leitura se casa com a crise brasileira, na qual a ameaça ao mandato da presidente Dilma é fator preocupante, conquanto não seja a ameaça mais grave.

Cuidemos, hoje, de nossa miséria, a crise da política anunciadora de uma provável crise institucional, essa caracterizada pela iminência de uma anomia dos poderes da República. Seu epicentro gira em torno do Executivo, mas a ele não se limita, contaminados que estão o Legislativo e o Judiciário, e por isso mesmo igualmente desamparados da confiança da sociedade, trabalhada incessantemente pelos fatos objetivos (“mensalão”, Lava-jato, contas no exterior) agravados pela acentuação ideológica dos meios de comunicação de massa, construindo um ambiente de desesperança, desgosto e desânimo capaz de desarticular qualquer sentimento de nacionalidade.

Instala-se o círculo vicioso do desânimo levando ao desânimo, a depressão aprofundando a depressão, o anúncio da recessão levando à recessão de fato, o sentimento de perda antecipando derrotas.

É nesse ambiente que o Executivo vive sua crise agônica, caracterizada pela crise de governança que abala os poderes da Presidência, poderes que precisam ser fortes em qualquer modelo de presidencialismo, mormente nesse nosso, que se chama de ‘coalizão’ para acentuar sua absoluta ausência de caráter ideológico.

Diante dessa fragilidade crescem as dificuldades de relacionamento da Presidência com um Congresso cujos titulares majoritariamente há muito renunciaram às regras da ética republicana, o que por seu turno aprofunda a ingovernabilidade, e ameaça de descrédito a instituição, já desmoralizada a essência do mandato parlamentar, eivado de ilegitimidade. Ilegitimidade derivada do mau exercício do mandato, mas fundamentalmente derivada da própria origem do mandato parlamentar, comumente adquirido mercê da influência, decisiva, do poder econômico.

Nossa República macunaímica não regateia surpresas. No momento em que é ameaçada a integridade do mandato da Presidente da República, os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal são objeto de apuração criminal e podem, a qualquer momento, ser destituídos de seus cargos e, mesmo, presos, como o precedente de Delcídio Amaral muito bem sugere. De outra parte, as contas da presidente da República estão a depender de um Tribunal de Contas cujo presidente, candidato à reeleição, responde a sindicância interna acusado de tráfico de influência, ao tempo em que é investigado na Operação Lava Jato.

As contas de campanha dos candidatos Dilma-Temer serão julgadas por um TSE onde se sobressai um ministro pouco afeito ao decoro e que se comporta menos como magistrado que como um inflamado líder oposicionista.

Nesse vácuo proporcionado pela falência funcional do Congresso e do Executivo, assoma o Poder Judiciário. O STF, partidarizado, legislando e criando direito novo a cada julgamento, e julgando cada vez mais a partir de premissas políticas ou conveniências corporativas, se impõe aos poderes fundados na soberania popular e passa a articular uma história própria. Assim se transforma, ele também, em fator de desestabilização política e insegurança jurídica, o que ofende os direitos da cidadania.

Se não há direito anterior condicionando o julgado, se o direito atual pode ser modificado, se os conceitos dos institutos jurídicos podem ser alterados a cada voto para justificarem decisões, o Estado de direito, tão referido pelos julgadores e reclamado pelos juristas, transforma-se em estado de desassossego.

A crise da Política compreende a crise das instituições e caminha para a crise da democracia representativa, alimentada pelo fracasso rotundo dos partidos e a ausência de lideranças com as quais possa o cidadão comum se identificar num momento de pânico cívico. Adolf Hitler já foi tábua de salvação de um povo levado ao desespero, desespero que na Itália pavimentou a ascensão de Mussolini, na Argentina elevou Perón, porque as crises costumam se transformar em tragédia, como foi na Itália contemporânea a emergência de Berlusconi navegando nas vagas das Mãos Limpas.

Roberto Amaral