Na disputa com a direita, agora sem maquiagem, o voto precisará ser revigorado a cada embate do governo
por Roberto Amaral — publicado em Carta Capital – 30/10/2014 16:42

Dilma Rousseff durante caminhada em Porto Alegre. Ela vai precisar de apoio popular

Dilma Rousseff durante caminhada em Porto Alegre. Ela vai precisar de apoio popular

Várias são as reflexões ensejadas pela eleição de Dilma Rousseff. A primeira, aliás, é exatamente esta, sua grande e significativa vitória, política e eleitoral que é, de igual modo, a consagração de seu governo e da opção progressista, da visão moderna de sociedade democrática, pela qual tanto lutam os socialistas brasileiros. Em face de duas visões de mundo antípodas, o eleitorado optou pela que indicava a busca do desenvolvimento econômico – por acelerar-se – como meio de chegar, ainda em nossos tempos, a uma forma aproximada de igualdade social, a aspiração possível dentro do regime de iniquidades que privilegia o capital e o rentismo estéril. O veredito eleitoral deve ser recebido, também, como declarado apoio do país à política externa independente, à busca por autonomia e soberania e a reafirmação das políticas sociais distributivas de renda. Mas as eleições de 2014 também revelaram a ascensão de uma direita forte e assumida, e o crescimento do pensamento conservador e reacionário, de raízes autoritárias (o velho conflito entre a casa grande e a senzala) expresso em parte da votação de Aécio Neves, que tão bem soube representar a ideologia da dependência e do atraso. O fenômeno, por óbvio, não é sua existência – que acompanha toda a nossa história –, mas seu crescimento e sua importante expressão eleitoral, de que se deve esperar consequências.

Há, porém, um fato positivo a registrar e trata-se da revelação de uma direita de cara limpa, sem máscaras e sem maquiagem, ensejadora do debate ideológico, sem intermediações, sem fraude, sem tergiversação. Ao sair do armário, o fantasma propiciou à cidadania escolher entre dois modelos antagônicos de sociedade e país.

A resposta é consabida.

Mas o ovo da serpente pode estar sendo chocado.

Cabe, agora, dar consequência a essa escolha e essa depende, hoje como jamais, menos dos arranjos políticos do que do apoio da sociedade defendendo o governo que elegeu e assegurando-lhe o lastro politico-popular que jamais encontrará no Congresso. O apoio de que Dilma carece em hipótese alguma virá dos ‘donos do poder’, encastelados na av. Paulista e ditando a linha editorial dos jornalões.

Esse apoio será conquistado nas ruas, no debate franco e aberto com a sociedade, com os movimentos sociais, com os trabalhadores, com os estudantes. É preciso animá-lo, todavia.

Derrotada nas urnas – como é de seu destino – a direita brasileira breve forcejará por desestabilizar o governo popular. Embora participando do processo eleitoral, a direita, no mundo e no Brasil, jamais esteve essencialmente comprometida com a democracia, que fratura sempre que a correlação de forças lhe é favorável. Pois a irresignação eleitoral que leva ao golpismo está em seu DNA, desde a velha UDN de Lacerda e as vivandeiras que, eleição após eleição, isto é, derrota após derrota, corriam em procissão aos quartéis. O chamado ‘terceiro turno’ já está na praça e se expressa numa oposição sem quartel. Na verdade, a presidente, hoje, enfrenta a mesma oposição – raivosa, preconceituosa, reacionária – que blaterou sem cessar, no governo e na campanha eleitoral.

Ao poder de sempre somam-se a bílis dos derrotados e a ambição dos interesses contrariados, a crise das legendas ideológicas e o pragmatismo dos oportunistas, encastelados em todos os partidos. Crise ideológica, crise de organização, crise de liderança, eis o caruncho que corrói as entranhas dos partidos. Essa decadência é um dos fatores que, nas águas do desapreço da cidadania à vida partidária, abriu sendas pelas quais navegou o discurso conservador, invadindo todos os setores sociais, cotidianamente desenvolvido nas universidades, nos partidos e nos quartéis e nas escolas militares, no empresariado, expresso sobretudo pela grande imprensa, muito bem sucedida no esforço visando à alienação das classes médias. Por isso mesmo o conservadorismo não é um atributo exclusivo da classe dominante, chegando mesmo a incrustar-se em camadas populares, principalmente junto àquelas mais sensíveis a certas visões pentecostais.

Se a luta agora está posta em seus devidos termos, não será ela menos difícil de ser enfrentada.

No primeiro momento, não havendo podido derrotar sua adversária, a direita tentará manietá-la, acuá-la, induzir o segundo governo nas sendas dos seus interesses, ditar normas e condutas (já soam ‘exigências dos mercados desconfiados’), indicar à presidenta o que precisa fazer e o que não pode ser feito. A imprensa já está ‘nomeando’ ministros, de especial aquele que diz respeito ao interesse maior do poder econômico, o ministro da Fazenda, e já tenta ditar a política do Banco Central. Em nome de uma ‘conciliação’ que é só embuste, porque não se conciliam interesses em conflito, pois há um conflito, que jamais foi apenas latente, entre os de ‘baixo’ e os de ‘cima’. Há sempre uma força hegemônica, o que não significa que uma vitória eleitoral importe necessariamente na conquista da hegemonia. Pari passu, e num crescendo medido pelos interesses frustrados, a oposição desabrida, no Congresso e fora dele, a tentativa de desmoralização e descrédito. Quaisquer que sejam os gestos da presidente e seu chamamento ao diálogo, a oposição ao governo, já ativa nos jornalões, será a mesma que fustiga a presidente Dilma no mandato findante. Por uma razão muito simples: o patronato jamais se confunde sobre o papel que lhe cabe na luta de classes. Aliás, muitos dos que viveram os anos 1963-1964 (e ai do político de esquerda que os ignorar!) viram, no período eleitoral recém concluído, mormente no segundo turno, o mesmo clima de quase ódio e intolerância (sobrevivente) que a classe dominante e seus satélites (pequena-burguesia, classe média isso e classe média aquilo) moviam contra Jango e seu governo. E note-se, naquele momento então a imprensa não era, como hoje, uma força monolítica da direita, nem a televisão, posse dos dominantes, tinha a irradiação nacional de hoje. Havia um mínimo de concorrência entre os veículos, que eram muitos – e alguns apoiando o governo, como a Última Hora – e inexistiam as redes e o virtual monopólio de audiência no rádio e na tevê. Monopólios que, diga-se de passagem, não foram só herança da ditadura, consolidados que foram pelos governos democráticos pós 1985, inclusive pelos governos de Lula e de Dilma. Deve-lhes a direita uma errônea política de distribuição de recursos da União (publicidade, compras de livros didáticos, projetos educacionais etc e muito etc.), uma distribuição acrítica de canais que favorecem o monopólio e a alienação.

É bom olhar para o passado pois no seu espelho o bom estrategista vê o futuro, ainda em tempo de alterar seu curso.

O povo que elegeu Dilma Rousseff deu-lhe mandato e autoridade para operar as mudanças e principalmente aquelas mudanças estruturais que só se realizam quando apoiadas pelas ruas repletas de povo.

Para tratar de tema polêmico comecemos por discutir a tal ‘governabilidade’ que não pode ser apenas a consequência de inevitáveis negociações com partidos desfibrados e bancadas de interesses, o mais das vezes inconfessáveis. A ‘base de governo’ não pode depender, como agora, tão-só, de partidos inconfiáveis (estão aí à vista de todos as votações desta semana na Câmara dos Deputados), ou de líderes de súcias. Precisamos, seus eleitores, dar à presidenta as condições objetivas de fugir a essa armadilha. Mais do que nunca, seu governo, e sua inclinação ideológica, dependerão do apoio popular que, desta feita, não pode encerrar-se no ato cívico do voto dado no dia 26. Esse voto precisará ser renovado todo dia, e revigorado em todos os embates do governo que, doravante, não serão poucos, nem fáceis.

Não podendo encetar, no momento, a mais crucial das reformas, que é a do Estado – pois esta depende de emendas à Constituição – o primeiro grande projeto (ao mesmo tempo o caminho mais curto para uma governabilidade republicana) é a reforma do processo eleitoral, também chamada de ‘reforma política’. Ela é tão importante que os jornalões já se antecipam no combate à proposta da presidente Dilma de convocação por plebiscito e confirmação por referendo, que, de per si ou em conjunto, assegurariam ao novo diploma legal a legitimidade do apoio popular.

Já se disse quase tudo que pode significar crítica ao atual sistema, a começar pelo financiamento privado que se torna público com os serviços prestados pelo beneficiário à empreiteira ou banco investidor. Mas esse não é o só problema que desnatura o processo eleitoral. Ao lado do financiamento público exclusivo de campanha, é fundamental vedar as coligações proporcionais e, nas majoritárias, evitar a soma dos tempos de rádio e de televisão, fonte das mais promíscuas negociatas entre partidos, muitos dos quais são criados e mantidos apenas como instrumento de rendoso achaque. O próximo mandatário estará livre da missão-impossível que se cobra hoje da presidenta Dilma: negociar com 28 legendas (que ao fim e ao cabo não passam de três ou quatro partidos), com ‘líderes’ que não lideram e bancadas corporativas de toda ordem, cada qual com seu próprio jogo: as bancadas do agronegócio, dos militares, da bala, dos evangélicos, dos sanitaristas, do esporte, atuando como se partidos fossem, autonomamente, à revelia de suas direções e de suas lideranças.

Por fim e por ser o fato mais importante, retomemos o grande feito dessas eleições: a vitória retumbante de Dilma. Insisto neste retumbante pois trata-se de vitória da resistência popular, ante o poderio do meios de comunicação extrapolando todos os limites éticos e legais, desde a unânime parcialidade à excrescência golpista da inefável revistona.

Diz-se que o País está dividido, mas não se diz que essa divisão é o segundo tempo da arrogância da classe dominante, que não aceita o fato de o explorado haver tomado consciência da exploração de que é vítima e identificado a sede de seus interesses. A arrogância de direita unificou nessas eleições todas as forças da reação e atraiu setores ponderáveis das camadas urbanas, conquistadas pelo discurso anti-PT, em nome do combate à corrupção, da qual elas, as classes dominantes, são as principais responsáveis, corruptoras que são desde sempre.

Roberto Amaral