por: Roberto Amaral
Postado na Carta Capital on line dia 29/05/2014
Acordo firmado entre o governo FHC e os EUA para a cessão de parte do território de Alcântara só se assina de cócoras

Foto da Agência Brasil
Base de lançamento brasileira no estado do Maranhão
 AlcantaraÀs vezes pequenos gestos, ou gestos aparentemente pequenos, são a medida de grandes políticas, em cujo rol incluo a política externa independente estabelecida a partir do primeiro dia do governo Lula. Ela remonta às formulações de Afonso Arinos e San Tiago Dantas, continuadas por Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e Araújo Castro. Dela, uma de suas fundamentais iniciativas foi o defenestramento de Washington (é só um exemplo de outras remoções necessárias aos interesses nacionais) do embaixador brasileiro que lá se encontrou a serviço da subserviência. Serviço que prestava, ressalte-se, gratuitamente, por pura sabujice e satisfação interna, assim como age todo colonizado em frente ao seu senhor colonizador, máxime quando todo poderoso. Franz Fanon – leitura reatualizada como neocolonialismo– trabalhou muito bem  essa categoria de dominado que assume por prazer a ideologia (donde o discurso) do dominante, reproduzindo-o como passiva correia de transmissão. Aliás, esses pobres diabos não reconhecem seu próprio  papel ideológico, e, como se não soubessem o que é  ideologia, classificam como ideológico tudo aquilo que não segue o catecismo no qual aprenderam os mandamentos do servilismo. Para eles, por exemplo,  toda ação de defesa dos interesses do país – o nacionalismo, vá lá— é carregada por uma pulsão ideológica, e a única formulação ideológica que conhecem é a do esquerdismo. O entreguismo, não. Esse é puro sentimento ou ciência.

Antigos embaixadores de carreira, particularmente os que andaram por Washington, Londres, Paris e Berlim,  que serviram com denodo à lastimável política externa de FHC, aproveitam-se  da aposentadoria merecida para, na imprensa que lhes abre espaços generosos, combater os interesses nacionais, a pretexto de fazerem oposição à atual política externa brasileira por eles estigmatizada como ideológica, e ideologia cai no dicionário dos adjetivos pejorativos. Como se a própria crítica não fosse uma ideologia a serviço de um interesse.

Em espaço latifundiário num grande jornal paulista, o candidato a ministro das Relações Exteriores em eventual governo do ex-governador mineiro (o que é em si uma ameaça),  reclama da recusa do Congresso Nacional em ratificar o Acordo firmado entre o governo FHC e os EUA para a cessão de parte da soberania brasileira sobre o território de Alcântara, no Maranhão, para a instalação de uma base de lançamentos de foguetes. Acusa o governo Lula de haver agido por ‘razões ideológicas’. Ora, o ex-embaixador, convenientemente, esquece-se de dizer que a ratificação do Acordo fôra rejeitada por 23 dos 25 integrantes da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, em rara demonstração de convergência suprapartidária naquela Casa, fundamentada em primoroso voto do então deputado Waldir Pires.

O ex-embaixador, que, aliás, e por coerência, preside a Câmara de Comércio Brasil-EUA, não se dá ao trabalho de explicar que sorte de acordo era este firmado por FHC. Para suprir sua omissão, informemos algumas de suas características, negadas aos seus leitores. Vejamos.

O acordo leonino previa a possibilidade de veto político (sem necessidade de justificativa) dos EUA a lançamentos, brasileiros ou não, a partir do Centro de Lançamento de Alcântara, empreendimento brasileiro em território brasileiro, hoje uma base da Força Aérea Brasileira (art.III, A); proibia nosso país de cooperar (entenda-se como tal aceitar ingresso de equipamentos, tecnologias, mão-de-obra ou recursos financeiros) com países não membros do Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis – Missile Techonology Control Regime-MTCR (art. III, B); proibia o Brasil de incorporar ao seu patrimônio ‘quaisquer equipamento ou tecnologia que tenham sido importados para apoiar Atividades de Lançamento’ (art. III, C); proibia o Brasil de utilizar recursos decorrentes dos lançamentos no desenvolvimento de seus próprios lançadores (artigo III, E); obrigava o Brasil a assinar novos acordos de salvaguardas com outros países, de modo a obstaculizar a cooperação tecnológica (art.III, F); proibia os participantes norte-americanos de prestarem qualquer assistência aos representantes brasileiros no concernente ao projeto, desenvolvimento, produção, operação, manutenção, modificação, aprimoramento, modernização ou reparo de Veículos de Lançamento, Espaçonaves e/ou Equipamentos Afins (art. V, 1); concedia a pessoas indicadas pelo governo dos EUA  a exclusividade do controle, vinte e quatro horas por dia, do acesso a Veículos de Lançamento, Espaçonaves, Equipamentos Afins, dados Técnicos e ainda o acesso às áreas restritas referidas no artigo IV, parágrafo 3, bem como do transporte de equipamentos/componentes, construção/instalação, conexão/desconexão, teste e verificação, preparação para lançamento, lançamento de Veículos de Lançamento/Espaçonaves, e do retorno dos equipamentos e dos dados Técnicos (art.VI, 2);  negava aos brasileiros e fazia concessão exclusiva aos servidores dos EUA do  livre acesso, a qualquer tempo, ao Centro de Lançamento para inspecionar Veículos etc. (art.VI, 3); exigia do governo brasileiro a garantia de que todos os representantes brasileiros portariam, de forma visível, crachás de identificação enquanto estivessem cumprindo atribuições relacionadas com Atividades de Lançamento; referidos crachás, porém,  seriam emitidos unicamente pelo governo dos EUA, ou por Licenciados Norte-Americanos (art. VI, 5).

Este é um típico acordo de lesa-pátria que só se assina de cócoras e só pode sentir-se bem em firmá-lo um governo cujo chanceler se dispôs a tirar os sapatos para ingressar no sagrado solo dos EUA.

Tenho a honra de, como Ministro da Ciência e Tecnologia,  na digna companhia dos ministros Celso Amorim (Itamaraty) e José Viegas (Defesa), haver solicitado ao governo da República a retirada desse acordo do Congresso. O objetivo era cuidar da soberania nacional, nosso dever funcional que não alcança determinados embaixadores, e assegurar, no futuro, a possibilidade de o Brasil possuir um Programa Espacial Autônomo. Projeto ao qual, claramente, sem tergiversações, sempre se opuseram e se opõem os EUA. Assim, já no distante 1997 — trata-se apenas de um exemplo, um em cem–, portanto nos primórdios do Projeto Cyclone-IV, decorrente do acordo Brasil-Ucrânia (que o embaixador malsina simplesmente porque ele inviabilizou ou atrasou o acordo com os EUA), a FIAT-Avio, que dele participava, desligou-se ao ser notificada de que os EUA não viam com bons olhos o programa espacial brasileiro. (‘Para que os brasileiros querem ter um programa espacial próprio se podem comprar nossos serviços de lançamento?’). Quando da homologação pelo Congresso brasileiro do Acordo com o Brasil, a Ucrânia foi informada de que os EUA, consultados, não ofereciam óbices à cooperação, ‘mas continuavam entendendo que o Brasil não deveria ter programa espacial próprio’. (Guardo cópia desse documento.) E enquanto não tem, depende dos lançadores e dos satélites dos EUA e da China. O Brasil despende, por lançamento realizado em sítio de terceiros, algo entre 25 e 50 milhões de dólares.

Nosso atual programa compreende satélites lançados lá fora: dos EUA – um satélite pequeno, mas cujo lançamento nos custou R$ 100 milhões; a classe dos CBERS – satélites construídos por Brasil e China, mas lançados da China, com seu veículo Longa Marcha; e outros, fabricados para nós no Canadá, ainda nos EUA e na França, e lançados todos da base de Kourou, na Guiana Francesa.

O acordo rejeitado era e é só e tão só um instrumento a mais, que se associava às pressões diplomáticas desde cedo levadas a cabo, pois, como todo mundo sabe, sabem até as esculturas de Bruno Giorgio que embelezam os jardins do Itamaraty, os EUA possuem vários centros de lançamentos e não carecem do nosso. Seu objetivo era e é simplesmente inviabilizar nosso projeto de desenvolvimento autônomo, ou fazer com que o Centro de Lançamentos de Alcântara, uma vez construído,  não fosse nosso, mas deles, ou que, na última das hipóteses, estivesse sob seu absoluto controle.

Este é o cerne da questão. As distorções ideológicas ficam por conta do embaixador amuado pela perda do posto.